21 gramas
Assim que pesei o pé no freio mirando parar no semáforo fechado percebi, prostrada no meio fio, uma silhueta miudinha. Tão quieta, tão imóvel, que me levou um tempo, e alguns metros de avanço, para compreender que era uma criatura viva que se encontrava ali.
Tão logo parei o carro, a silhuetinha abandonou o tom inanimado, se empertigou em um pulo e, antes que meu cérebro desse conta de processar a sequência ágil e certeira de seus movimentos, caminhou na minha direção.
- Boa noite! - disse eu.
E logo que disse me arrependi, pois a criaturinha parou em um solavanco. Susto, desconfiança e o que me pareceu um lampejo de zanga brotou dos olhos bem redondos, típicos dos filhotes. Se demorou alguns segundos assim, me encarando, até retomar a marcha.
- Pó limpá o vidro aí, tia? - Disse ele friamente, deixando claro que não tava ali pra jogar conversa fora, e ok, eu entendi. Me calei.
Enquanto ele ia espalhando à esguichadas o sabão pelo parabrisa, eu ia estudando seu rosto. Percebi vincos já bem formados entre a testa e o nariz, profundos demais, irreversíveis demais, naquela fronte pequena de pele ainda amaciada de inocência. Fiquei pensando em como era possível uma existência tão breve se encontrar assim, tão definitivamente marcada.
Com metade do vidro ensaboado ele pareceu, de súbito, assimilar algo grande e, com um movimento brusco e impaciente, o menino posicionou os bracinhos na cintura, mantendo na mão esquerda o rodinho, na direita a embalagem de detergente e, com o quadril apoiado no capô, mirou os olhos grandes nos meus, mandou pra dentro do peito uma lufada de ar e disparou:
- Tu é doida, é tia? Tem ninguém na rua, já é bem umas doze hora, e a senhora aí cus vidro tudo escancarado! Tem medo de mim não? - bradou ele, de um fôlego só. O olhar carregado de uma consternação tão sincera pela minha atitude, uma certeza tão absoluta do absurdo que era a minha imprudência, que foi capaz de me calar. E da minha boca débil, da minha mente privilegiada e preguiçosa habituada à crer que as perguntas mais cabeludas que podem brotar da cabeça de uma criança são aquelas sobre as cegonhas, os repolhos, o começo do mundo, a cor do céu, não fui capaz de extrair mais que um frouxo e inútil “não, claro que não”.
Com a expertise de um genuíno veterano, sabendo que em segundos o sinal mudaria de cor, limpou com agilidade os últimos dois filetes de espuma do parabrisa. Aceitou a recompensa pelo trabalho, agradeceu, pediu pro seu deus bençãos à mim, e a gente se despediu: valeu, tia; se cuida, garoto.
Mal encaixei o pé no acelerador, mal pude observar pelo retrovisor o corpinho magro retornando ao meio fio, senti um buraco denso se formar no fundo do estômago, o coração precipitar de tal maneira os batimentos que eles pareciam acontecer aos atropelos, um em cima do outro, enquanto uma força impossível de combater me estrangulava a garganta. E então, eu me odiei. Odiei todos nós.
Nós, que temos a petulância, a ridícula audácia de, tendo em mãos a dádiva da mente límpida, pura, romantizada das crianças, nos fazermos capazes de transfigurar à pauladas aquele sentimento que a maioria experimenta por um único período, justamente na infância: a presunção de inocência universal dos seres humanos, a certeza absoluta de ser bom.
Nossos motivos, as justificativas de nossas atrocidades, são nossos carros, nossas casas, nossas coisas, nossos privilégios, nossas conveniências.
Prostramos olhos raivosos, deferimos ofensas cruéis à seres que não podem, estando impossibilitados pela incompreensão da sequidão da realidade, se encontrar no estágio de vida onde é possível ser qualquer outra coisa além de verdadeiramente bom.
Ignoramos, sem nos pesar nos ombros, que aquele corpo miúdo tem exatamente a mesma composição de carne, sangue, água e 21 gramas de alma embebida de inocência que os corpos miúdos que carregamos dentro dos nossos carros, que ninamos nos nossos colos, que estimulamos com nossas palavras. De onde tiramos que não são eles os mesmos? Como somos capazes de dedicar veneração à um e repulsa à seu igual? Onde é que, por raios, foi parar os nossos 21 gramas de alma?
Que porrada esse texto! Prendi o ar na medida em que ia lendo e ainda estou entalada. Só bons escritos conseguem dar socos tão bonitos.
ResponderExcluirNada como começar o dia com uma chacoalhada dessa... Meus 21g de alma se agitaram aqui.
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