A rua, a pandemia e o sistema

Sinal vermelho, calor sobralense, asfalto, pandemia em razão do corona vírus, quarentena. Nesta época temos tido medo do outro, ainda que esse outro seja do nosso coração. Está no outro o mal. Ele pode carregar o vírus ou eu. A vida fica então a dois metros de distância. Tem gente que dois metros não é bastante, do Ceará para Brasília, a distância ainda parece pequena.

Voltando ao sinal vermelho, estão os dois: o velhinho de pele queimada e máscara do time preferido vendendo cocada e o garoto das facadas.

O mais velho corre até a porta do carro com sua bacia de cocada dizendo: três potes por cinco reais. O garoto aproveitou para pedir dinheiro ou cocada. Comprei de um e doei para o outro. É isso companheiras, o sistema funciona assim.

O mais velho ignorou aquele espírito magro que estava ao seu lado. Vi a negociação capitalista ali entre os dois condenados da cidade que dividiam o mesmo espaço de pedir.

Faz dois anos o garoto levou 14 facadas de alguém que pretendia fazer uma “eugeniazinha” na cidade. Passou uma temporada internado, ficou na UTI, mas o anjo da morte deve ser branco porque devolveu esse mesticinho para o purgatório chamado Terra. Ele foi “recuperado” disse o CAPS. Engordou, se limpou das drogas e voltou para casa. Foi morar com a vó.

Um mês depois estava nas ruas de novo. Sua explicação: não consigo dormir sob uma cama e sinto o teto me sufocando. A rua então se tornou para ele um lugar de liberdade e morte, fome e espaço de com?vivência, e de disputa com o vendedor de cocada.

O vozinho não tem como orientá-lo por que o outro já perdeu o sentido, mesmo aquele que tem algo parecido com ele é só mais um corpo, deverá ser usado em sua função instrumental que é parar o carro. Paramos para o “cocadeiro” por que o pequeno com 14 cicatrizes se esconde atrás do poste. “Se me virem, não param” ele me disse quando perguntei do esconderijo. Ele causa mais medo do que o vírus. Suas cicatrizes (pobreza, raça, drogas) chegam antes dele, por isso ele se esconde daqueles que não o veem.

Escondido atrás do poste, ele nos assegura de sua invisibilidade, portanto inexistência, portanto estamos seguros. O velhinho não nos assusta, está mediado pelo trabalho, aquilo que enobrece, pela idade e pelas vestes asseadas ganha a comiseração dos afortunados como eu. O fantasma que aparece ao seu lado é o que sobrou do sistema, é o matável, é o negligenciado que não tem poder algum sobre nós, nem nós sobre ele por que nós o perdemos deixando-o sem cama, sem teto e ele fez disso sua morada.

Estamos de parabéns: cancelamos o nosso outro de modo que ele mesmo agora faz questão de apertar o selfdelete.


Comentários

  1. Termino o texto e as únicas palavras que parecem servir para comentá-lo são palavrões. Palavrões carregam um quê de sujeira, de indignação, de raiva e, como quase toda raiva, de medo. Tenho tudo isso em mim quando vejo esse espelho, demasiado nítido, do que somos.

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  2. Sempre me questionei pq ser invisível é considerado um super poder. Eu achava dos mais idiotas! Hj eu vejo q o super poder não é exatamente ser invisível, mas sim q isso seja uma escolha: qdo eu escolho ser invisível, pq qdo o outro escolhe por mim é anulação, ele venceu sem sequer lutar. Há vitórias com um gosto persistente de derrota, essa é uma.

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)