De geração para geração


Era ainda na década de 80 quando eu saí da grande e barulhenta São Paulo, para a miserável e escura Caucaia. Eu tinha onze anos e não entendia como meus pais poderiam ter feito uma troca tão patética. Sair de sampa para o seco Ceará, mas especificamente para aquela cidade tão tão distante da vida cheia de luz a qual estava acostumada naquela favela paulistana. Essa foi a minha impressão de menina da cidade. Não foi um mês e eu já não me lembrava mais da cidade dos arranha céus. Ela, dona Chiquinha me mostrou luzes na escuridão. Eu aprendi mais que meus onze anos tinham me ensinado. Enquanto eu jogava o milho na terra com ela, aprendi a arte da paciência, enquanto eu colhia o algodão com ela aprendi que as plantas também reagem aos nossos ataques, aprendi a pegar na enxada com leveza para não partir a batata doce ao meio, aprendi a esperar dias para comer um bolo de karimã, aprendi a remendar redes de pescaria e o quanto as marés influenciam em tudo por que tem a ver com a força da lua nas nossas vidas...tudo indicava muita espera  e esta era marcada pelo aprendizado com contação de histórias de trancoso. O tempo passava como se eu vivesse um conto de fadas cheio de sofrimento, alegria, surpresas e aprendizados e de repente chegou a época de sentir que aquilo tudo era em vão por que as garotas legais da escola não querem ser amigas de meninas que cuidam dos cabelos com sabão de coco e entendem de agricultura e marés.  Chegou a época de deixar tudo para trás e fazer de conta que nunca aconteceu por que qual garoto olharia para alguém que gosta de livros, terra e fala sobre a importância da lua para nossa saúde? Eu não queria ser estranha. Apaguei tudo da memória. Deixei tudo num baú longe de mim para não cair em tentação e voltar a ser a jeca tatu que ninguém quer a amizade. Saí de casa e fui viver a vida que achava que deveria ser vivida. O que veio entre esse período no qual eu tinha 15 anos e o agora que tenho 45 vou deixar para outro momento. Mas quero dizer que minha memória e os aprendizados sentiram vontade de se apresentar todos agora que percebi o medo de muitos estudantes apresentarem o cenário de suas casas nas aulas remotas. Por que tememos que vejam nossa profundidade? O que temos de mais precioso deixamos com a câmera desligada por que o outro, tão grande outro nos leva a pensar que somos insuficientes? Tanta crueldade conosco. Trinta anos atrás eu tentei. Juro que tentei. Levei uma amiga até meu castelo de barro, com plantas doiradas que brotam depois da chuva, nossa casa, tinha um chão de barro e cheirava à florzinha do cajueiro, com uma velhinha numa cadeira de balanço e cachimbo na boca contando diversas histórias pensei que encantaria a visita, mas tudo isso causou asco na garota “mais legal” da escola. Entendi que era assim que deveria ser. E segui indo embora com essa garota de quem tomei asco dois anos depois. Como a gente demora a cair a ficha...

Minha vó deveria sentir vergonha de mim. Uma pena ter Alzheimer hoje, ou talvez seja bom para que não tome conhecimento de tamanha babaquice de sua neta mais velha.

Agora estou aqui sentindo uma saudade tremenda do cheiro do tabaco que vinha do cachimbo dela, dos cortes recebidos na colheita do algodão, do cheiro do peixe sendo cozido no leite de coco, e do barulho dos pescadores ao chegarem da pescaria. Essa velha mulher me ensinou tanta coisa, inclusive a enfrentar maus tratos por ser uma garota com traços afro-indígenas.

Mas vivi o que tinha de ser vivido, e aprendi o que tinha de ser aprendido. Todas essas memórias que ficaram na caixa de pandora voltaram antes, agora só pularam para dentro do papel. Faz tempo que não permito que me tirem quem sou. Faz um bom tempo que não me dizem o que é mais valioso na minha vida. Vovó antes de perder a noção para essa doença fez-me um doce de caju com castanha dentro e eu disse: ninguém faz um doce como a senhora. Dado o fato de que já tinham se passado muitos anos depois que fui embora de casa, creio que ela em sua sabedoria já havia me perdoado pelo abandono, a ponto de responder: ele é doce do tamanho do teu coração. Ela sabia que eu havia me perdido e que isso foi muito importante para que eu me achasse. Não aceito que negligenciem nossos velhos e nossas velhas. Como dizem os povos originários, eles são nossa memória, até quando não a tem mais.


Comentários

  1. Eu tb fui essa pessoa diferente q amava os livros, q transitava num mundo à parte. Teu texto fez mto sentido pra mim. Texto forte e doce, cheio de uma conhecida nostalgia..

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  2. Tão difícil viver num mundo encaixotado. Tanta riqueza perdida, tanto sofrimento evitável. Às vezes, a vida parece um maldito telefone sem fio, mas, diferente da brincadeira, não rimos.
    Quem dera nossa amizade fosse de infância.

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    1. Nossa Ritinha, outro dia estava pensando nisso! Como tive péssimas amigas! Como queria que as de hoje fossem as de ontem. Eu me percebi sem amigas de infância. E as da adolescência também ficaram para trás...por motivos semelhantes. Mas acho que elas me prepararam para encontrar pessoas como vocês.

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    2. É isso,Dê. O passado nos fez quem somos hoje. Nos deu de presente as boas amizades!

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)