Insignificante
-Entra, Flor!
-Não dotôzinho, vô
entrar aí não, obrigada.
-Deixe de besteira,
mulher, não tá vendo que até as crianças estão lá.
-É muita água,
doutorzinho.
-Flor, na beirinha é
raso, não tem perigo não. E, se acontecer alguma coisa, tá vendo aqueles dois
homens de blusa vermelha?! Então, são salva-vidas, ficam só prestando atenção
para se alguém precisar de socorro.
-Entendi, dotôzinho,
mas, vá.... aproveite lá que eu tô bem aqui só olhando mesmo.
Reinaldo resolveu não
insistir mais. Pensou que gente da roça era teimosa e não entendia as coisas
direito mesmo. Sentiu-se feliz de ter cumprido seu papel de pessoa que se
preocupa com os subalternos. Essas pequenas ações, pensava ele, era que faziam
dele um homem bom. Um verdadeiro cristão caridoso, seguindo os passos de Cristo
no seu dia-a-dia e tendo, por isso, recebido tantas dádivas de Deus.
Floriana conhecia
Reinaldo desde que ele nasceu, quatro anos depois dela. O doutorzinho, como
todos os empregados da fazenda o chamavam, foi um menino tranquilo. Não chorava
tanto quanto seu irmão mais velho, Doutor Alexandre, e era menos traquina também.
Apesar de tão próximos em
idade, Floriana nunca brincou com nenhum dos dois meninos. Sua mãe dizia que os
filhos do doutor eram seus patrões e não seus amigos. Com oito anos, Floriana
já tinha aprendido isso muito bem. Enquanto Alexandre e Reinaldo corriam pelos
campos, jogando pedra nas árvores e assustando as galinhas, ela ajudava a mãe
na lida. Lavava os pratos, fazia café, varria onde fosse preciso e colocava a
mesa. Prato por prato, para não ter perigo de quebrar a louça de Dona Lina.
Apesar disso, Floriana
não se queixava de sua infância. Para ela, o mundo sempre foi assim e, quando a
injustiça é feita desde bem cedo, ela assume ares de justiça. A verdade é que
Floriana se achava até sortuda. Sua mãe costumava contar como ter ido parar na
fazenda de Doutor Maurílio e Dona Lina tinha sido uma benção de Deus. A mãe de
Floriana tinha saído de Itagimirim, na Bahia, ainda mocinha fugindo da fome com
sua família e, depois de passar meses vivendo da boa vontade dos que enxergavam
nos seus olhos pretos um resquício de humanidade e, também dos serviços mal
pagos que, eventualmente alguém arranjava para ela ou para seus pais e irmãos,
chegou em Minas Gerais. Ela dizia que foi Nosso Senhor Jesus Cristo que colocou
na cabeça do pai dela de ir à feira tentar um serviço naquele sábado. Na feira –
o pai disse – se não tiver serviço, pelo menos tem as sobras das comidas no final.
O fato é que, o pai acabou vendo Doutor Maurílio e esse, generoso como ele só,
ofereceu emprego na sua fazenda. A família poderia morar numa pequena casa e,
além do pai e da mãe poderem comer junto com os outros funcionários o café, a
merenda e a janta, ainda ganhariam os dois juntos o que, hoje, equivaleria a
uns 200 reais por mês.
Depois da morte da avó, a
mãe de Floriana assumiu o posto de cozinheira. O pai de Floriana era um peão
que tinha ido ajudar na colheita na fazenda em um ano especialmente produtivo e
que nunca mais voltou lá. Talvez por isso, Floriana tenha tido poucos amores em
seus quarenta e três anos de vida. Ela acreditava que, amor bonito era coisa de
novela. Amor de vida real – pelo menos para gente como ela – era coisa que dava
muita dor de cabeça e pouca recompensa. Tinha conhecido o sexo e seus prazeres
ainda aos quatorze e, por milagre, nunca engravidara. Teve um namoro de dois
anos com Chico Joaquim que trabalhava na venda do centro da cidade, mas terminou
por descobrir que ele tinha outra mulher com quem pretendia se casar. Depois de
Chico Joaquim, passou a viver os romances só por meio das personagens da
televisão.
Floriana era uma negra
simpática, de olhos brilhantes e tão escuros quanto os de sua mãe. Seus longos
cabelos encaracolados, grossos e pretos contornavam seu rosto fino e de traços
marcantes. Os lábios grossos emolduravam os dentes brancos que se mostravam
quando ela ria verdadeiramente. Seu nariz, levemente afilado e pequeno, tornava
suas feições mais agradáveis aos patrões e aos seus constantes convidados. Foi
por isso que, logo que ganhou um pouco mais de corpo, Dona Lina pediu que ficasse
responsável por servir as refeições quando recebessem visita. Ganhou uma roupa
especial para essas ocasiões e, embora achasse a vestimenta horrível, aceitava
que quem entendia do mundo grã-fino era Dona Lina. Aos trezes, Floriana já
sabia perfeitamente como se comportar em meio aos ricos. Sorriso sem mostrar os
dentes, olhos baixos, gestos medidos, só falar quando requisitada diretamente
e, mesmo assim, com o mínimo de palavras possíveis.
As palavras e as ideias
que tinha, Floriana guardava para si. Não era de jogar conversa fora com
ninguém. Nem mesmo Marivalda, sua melhor amiga, sabia direito o que ela achava
das coisas. Sua amizade se limitava aos comentários dos programas de televisão
e da vida das pessoas conhecidas. Com Marivalda, Floriana falava no seu tom de
voz normal, ria mostrando os dentes quando assim queria, olhava nos olhos e não
media os gestos. O que fazia de Marivalda sua melhor amiga era que, com ela,
Floriana podia ser espontânea. Se não partilhava com ela seus pensamentos e
sentimentos era porque, no fundo, acreditava que não tinha muito a dizer sobre
o mundo. Sentia-se incompetente para falar coisas importantes. Nunca tinha lido
nada além da cartilha com que fora alfabetizada, nem conhecido outros lugares
além da fazenda e da cidadezinha da qual a propriedade fazia parte. Não
conhecia o amor de verdade, porque o amor não era coisa para ela. A convivência
silenciosa e serviçal com os grã-finos também lhe pareciam insuficientes para
lhe ensinar qualquer coisa, haja vista que, do que ouvia enquanto ficava de pé
no cantinho da sala aguardando solicitações de mais bebida ou comida, o maior
aprendizado era que gente como ela e Marivalda – ou todos que ela tinha algum
possibilidade de ser íntima – eram incompetentes demais para qualquer assunto
que exigisse um raciocínio mais apurado. Floriana acreditava tanto nisso que
sequer se ofendia com os ricos não disfarçarem seus pensamentos sobre pessoas
como ela na sua frente. Tampouco era-lhe estranho que a polidez das palavras dirigida
pelos poderosos aos seus iguais não se aplicasse a ela. Floriana abraçava sua
invisibilidade sem revoltas. Havia internalizado perfeitamente a gratidão que
sua mãe lhe ensinara. Toda noite, antes de dormir, rezava e pedia a Deus
proteção para toda família de Doutor Maurílio. Agradecia os míseros reais que
recebia por mês e que davam para pagar as parcelas de seus produtos de higiene –
escova e pasta de dente, shampoo, condicionador, sabonete e um perfume – e três
vestidos novos a cada ano.
Em última instância, foi o
fato de Floriana está plenamente moldada ao lugar que lhe designaram que a
levou até o mar naquele dia. Sua expertise em servir e aguentar a brutalidade
dos ricos com um sorriso simpático e sem extravagância, fez com que Reinaldo a
trouxesse da fazenda para ajudar em um evento para comemorar sua promoção ao
posto de vice-diretor da empresa onde trabalhava. A celebração havia
transcorrido a contento e, aproveitando o clima de animação da noite anterior,
Reinaldo decidiu ir à praia com a família no sábado. Como Floriana nunca tinha
visto o mar, ele lhe informou que ela iria com eles e que, de lá, ele a
despacharia para rodoviária.
Para Floriana era uma
oportunidade única. E, apesar dela não ter direito de recusar o ‘convite’ de
doutorzinho se quisesse fazê-lo, alegrou-se e ficou empolgada com o passeio.
Mesmo tendo ido dormir às 3:30 da manhã, após se certificar que a casa de Dona
Victória e Doutor Reinaldo estava impecável, acordou às 6:30 para tomar um
banho, arrumar sua sacola de pertences e preparar o café. Como doutorzinho e a
família acordaram tarde, a ida para a praia só ocorreu depois das 11:00. A
espera não abalou Floriana, esperar fazia parte de seu treinamento como
empregada. Quando as decisões não cabem, quase nunca, a você, resta aprender a
esperar que elas sejam tomadas por outros.
Eram 11:15 de um sábado
de julho, quando a imensidão azul inundou a vista de Floriana. Por uns segundos,
o mundo resumiu-se ao volume d’água salgada e barulhento que lambia a areia. Foram,
exatamente, as palavras de doutorzinho dizendo-a para entrar no mar que
romperam seu transe. Talvez por isso, ela tenha tido a espontaneidade de
negar-lhe obediência. No tempo em que esteve na praia, Floriana ficou sentada
na pequena toalha de rosto que colocou sobre a areia quente, enfiando os pés
naquela brancura macia enquanto admirava as ondas quebrando a poucos metros. Quando
doutorzinho sinalizou às crianças que eles iriam embora em dez minutos,
Floriana pediu licença e andou até a beira do mar. Sentiu o mar gelado tocar-lhe
os dedos. Riu mostrando os dentes, como se conversasse silenciosamente com as
ondas. Deu cincos passos a mais, deixando a água bater em seus calcanhares. Curvou-se
e, fechando os olhos, esperou a onda voltar e alcançar de surpresa suas mãos. Permaneceu
assim, deixando-se ser acariciada pelo oceano frio, por três ou quatro minutos.
Foi a primeira vez na vida que Floriana se deu conta que era possível ser
insignificante e se sentir viva ao mesmo tempo.
Experimentei fazer um conto dessa vez, meninas!
ResponderExcluirEu simplesmente vivi o conto. Estive ao lado dela. Flor...e me despetalei com ela, com reconstruí com ela à beira mar. Permissão para usar esse conto que narra a vida desigual sem perder a doçura? Minhas turmas precisam acessar esse escrito...
Excluirô Dê, eu fico muito lisonjeada em ter conseguido lhe envolver.Se você achar que tem serventia, fique super à vontade para usar.
ExcluirDelícia de conto! Esperando por mais...
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