Retas e curvas


Retas e curvas. Maciez e dureza. Imprecisões. Pequenos buracos na face indicando o que um dia esteve lá. Linhas na testa indicando a elasticidade que, pouco a pouco, vai abandonando a pele. Os olhos: um mais baixo que outro. A ponta do nariz levemente arrebitada. Um sinal na testa ("Deus não queria me perder de vista", me disse um dia minha mãe; gosto dessa ideia de um deus que precisa de lembretes).
Fissuras na epiderme seca. A grossura da sola do pé como resposta ao contato direto com o chão. Unhas e cutículas que crescem até machucar. Espinha no canto da boca. Calos e saliências. Dentes levemente amarelados. Cabelos indecisos entre serem cacheados, ondulados e lisos. Sobrancelhas grossas. Cotovelo áspero. Barriga arredondada: em sua baseum encaixe confortável para a mão.
Ontem, me olhei no espelho. O sol bateu e algo em meu cabelo refletiu. "O que é isso?" pensei e me pus a investigar. O tal do fio branco. De fato, esse era meio branco, o resto de sua extensão parecia como os demais. Eu sempre achei estranha a cara no espelho. O corpo, do colo para baixo, reconheço como meu. Reconheço que sou eu? Isso é mais difícil. O corpo parece sempre um adendo ao eu, embora isso me soe muito errado. A voz que habita em mim - em meu corpo?! - seria o 'eu'? A alma pensante dos filósofos? A alma das mil e uma religiões? Ou a voz, as ideias, as emoções, enfim, esse universo invisível e de pura concretude, seriam como os órgãos internos do corpo? Só porque eles não aparecem no espelho, deixam de ser corpo? Basta que não tenhamos ainda uma máquina que seja capaz de pinça-los para eles serem não-corpo?
Como você pode perceber, eu não entendo de corpo. Odeio a ideia de que ele seja uma máquina. Tenho asco das teorias que localizam minha intimidade singular no cérebro. Esforço-me, de novo e de novo, para não ser dualista. Sou dualista outra vez e tantas mais. 
Um dia li uma autora que dizia que o corpo é fronteira. Me encantei. Achei aquilo tão lindo, ainda que eu não tenha entendido exatamente como o corpo é fronteira. Gostei de imaginar-me fronteira. Fronteiras. Lugar de encontro e desencontro. Em geral, fronteiras são motivos de guerra. Mas, são também elas que delineiam fisicamente os contornos da paz. Sem dúvida, o corpo é objeto de disputa. Disputamo-o discursivamente, esteticamente, belicamente. Arrancamos os pedaços. Reformamos os excessos. Preenchemos seus vazios. Silicone, plástica, regime, lentes de contato, branqueamento, cigarro, cocaína, álcool, gordura, literatura, amor...
Damos nomes ao corpo - a nós! - de uma vez para sempre. Mulheres e Homens. Novos e Velhos. Pretos, Brancos, Amarelos, Vira-latas. E, no entanto, faz tempo que a ciência mostrou que centenas (milhares?!) de células morrem e outras nascem a cada dia. Que corpo fica, se seus elementos menores se reconfiguram? Será o corpo - nós, caramba! - memória? Seria a mesma coisa dizer que a memória é corpo? A memória sou eu? E, o que esqueço, morre? 
Eu bem lhe disse, lá atrás: não entendo de corpo. Mas, suspeito seriamente, que não se trata de entender.
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Comentários

  1. Texto novo, meninas

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    1. Esse corpo, ah esse corpo que é nosso primeiro território de demarcação...às vezes parece tão autônomo...sempre quando queremos algo e ele insiste em dizer não, por que algo dói...dói por que é nele que se imprimem as consequências de nossas decisões. Ele é nosso, somos nós nele, mas tal qual sua mãe gigante natureza que muitas vezes derrama sua fúria sobre nós, ele também se esgota e devolve aquilo que lhes demos, independente de dualismos, ele vai devolver...

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    2. Eu fico me perguntando se o corpo é nosso território primeiro ou se é nosso único território... Há tanta coisa implicada em cada uma dessas opções!

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  2. Corpo enquanto fronteira é uma ideia q sempre me encantou! Mas penso em fronteiras, assim no plural mesmo, pq parece-me não ser um território único... Tb atrai-me a ideia de invólucro, mas confesso q gera certa gastura e sensação de aprisionamento. No entanto, talvez seja isso tb e a ânsia de liberdade tenha uma raiz aí. Minha limitação me puxa para o dualismo constituinte e o estranhamento é o q possibilita o reconhecimento e as tantas reconfigurações, desconfio eu.

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