A perfeita imperfeição
A natureza imperfeita das coisas é o consolo de todo dia.
Saber da imperfeição estrutural, comum e geral, é o alento da vida.
(Deveria.)
Os pés bem na beirinha da tábua fria de alumínio, os dedos como garras, o corpo completamente hirto, a respiração suspensa. Toda a concentração no azul. O frio na barriga. Segundos antes do voo, a força, a entrega confiante no vazio. O silêncio.
O momento de não se pensar em nada, mente vazia, foco absoluto. Uns milésimos de segundo antes de planar. Abrir ou fechar os braços. Dobrar ou esticar as pernas. Contorcer o corpo ou mantê-lo ereto. Tudo era prévio. Tudo era breve.
Quando não há espaço, quando não há tempo, quando não se pode errar...
Mas se pode. Ou não? (E se errar? Cadê o regulamento, as regras, o manual? Quem sabe? Quem responde? Quem define?)
Conhecia o baque seco e dolorido do erro. Conhecia o baque atenuado do acerto. Era sempre, e irremediavelmente, um baque. Quem escolhe um baque? Talvez não houvesse escolha. Só sabia voar assim. O frio na barriga. O leve tremor que eriçava a nuca. A explosão da força, precisa e domesticada.
Incontáveis vezes. Repetidamente.
Uma sensação de poder assustadora e paralisante. O medo.
Absurdamente, comum.
Enquanto subia cada degrau, pensava nos cogumelos que apareciam no jardim depois das chuvas, os brancos. Aquela cúpula afofada, esponjosa e meio achatada. A haste da base seria um tipo de caule? Não, embora parecesse figurativamente. Sempre se intrigou com essa estrutura viva, nem planta, nem animal, crescendo de maneira vertiginosa e inesperada. Essa coisa frágil e fascinante, parecia perfeita. Um dia tirou a cúpula com delicadeza, seu interior era de um rosa estranho, cor de carne crua de ave. Uma cor esquisita que não sabia o nome. Pequenos filetes alinhados, raiados, pareciam paredes, estantes de biblioteca ou pastas de arquivo. Não sabia, mas não eram perfeitos.
Não eram perfeitos.
Continuavam lindos e fascinantes e ainda intrigantes. Mas não eram perfeitos! Sentiu vontade de chorar. (Um alívio misturado com decepção.) Não havia a perfeição imaginada.
Subir as escadas pensando nos cogumelos era seu segredo.
A natureza imperfeita das coisas é o consolo de todo dia.
Saber da imperfeição estrutural, comum e geral, é o alento da vida.
Os pés bem na beirinha do abismo. Lançar-se ao mistério do vazio e esperar o baque.
Todos os dias.
Coragem é uma coisa cheia de medos.
Hj tem...
ResponderExcluirTia, que coisa linda. A coragem tem mesmo o rastro da imperfeição. Lembrei do Aristóteles que, pela primeira vez, me mostrou que oposto do medo não é a coragem, é ser temeridade. Só os imperfeitos podem ter medo e, portanto, ter coragem. A imperfeição carrega a cor da vida.
ResponderExcluirai que fiquei foi emocionada agora. sempre digo que tenho medo de pouca coisa. são poucas as coisas que me assustam, mas a minha coragem sempre foi marcada pelo medo de perder...
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