DAS ARBITRARIEDADES DO PENSAMENTO
Pensamento da gente é bicho sem doma. Por vezes, espavorido, nos atropela. Noutras, arisco, espera. Bicho voluntarioso, sem hora e sem forma. Pensamento conduz a gente como quer. Todo senso de ordenação e sentido é posto à prova. Uma agonia sem jeito é um pensamento interrompido brusco, inconcluso (que aflição!). É coisa que vai esgueirando a gente pela vida, feito água ente pedras, sem linha, sem rumo reto, ramificado que nem raiz. Um pensamento é um fiozinho de nada que se abre, de repente, em caudaloso rio. Galho fino da ponta da árvore imensa, susto com o brilho das estrelas na noite escura.
É a pipa, a linha ou a mão que segura o carretel? Pensamento é o próprio céu.
Sentada à escrivaninha, de cômodo duvidoso por então, flagro meu pensamento num poema de Borges (é verdade que meu pensamento sempre espreita enamorado alguma literatura...):
“Mi callejero no hacer nada vive y se suelta por la variedad de la noche.
La noche es una fiesta larga y sola.
En mi secreto corazón yo me justifico y ensalzo.
He atestiguado el mundo; he confesado la rareza del mundo.
(…)
He dicho asombro donde otros dicen solamente costumbre.
(…)
He sido y soy.
He trabado en firmes palabras mi sentimiento que pudo haberse disipado en ternura. (…)”
É certo que meu indomável pensamento, bicho livre, não se contenta aí; vagueia por outros tantos versos, mas volta a esse com certo estupor. Não é um poema novo, ao contrário, velho conhecido. (Houve um tempo em que o sabia sem ler). Atrai-me a ideia de ter/ser um “errante não fazer nada”, essa coisa meio “vagabunda” –que, pra mim, nada tem a ver com a questão do ócio criativo (intimamente tenho ganas de tirar satisfação com Masi, que conseguiu validar o ócio tornando-o uma coisa com potencial produtivo, que bosta!) Sabê-lo vivo e solto, sentir que sou, sem ressalvas. Constato que meu alumbramento é com a miríade, as possibilidades abertas que atravessam cada palavra.
Saber que não há gaiolas, senão as que invento. Não há freio, senão o que puxo. Não há barreira intransponível, senão as que construí na minha triste limitação. Volto à Borges atrás do lampejo do improvável. Quero ressonância, eco para o que me extravasa. Em seu último verso ele diz:
“Siento el pavor de la belleza; ¿quién se atreverá a condenarme se esta gran luna de mi soledad mi perdona?”
Quem, além do meu pensamento? Ele que é a corte toda, réu, juiz, promotor, testemunhas, jurados, só não vítima. Não há vítimas. Pensamento da gente é uma coisa sem tino, ou teria muito tino? Não sei. É tanta vastidão que o perco de vista em mim. Pensamento da gente é coisa que trai nossa certeza, armadilha para convicção, sempre um “será?” duvidoso. Ainda bem! Já pensou que tolo um pensamento que se fia no fim de um muro imposto?
Sim, é arbitrário. Porque alguma coisa na gente há de ser, para nos impulsionar a transcender.
Fui atualizar o anterior e fiz um novo :-)
ResponderExcluirHoje a tarde foi enfadonha, sem vitalidade, mas ler você me revigorou. Obrigada
ResponderExcluirAmei o texto. Pensar o pensamento como arbitrário, como o que impulsiona. Uma pulsão atravessando o pensamento. Um pensamento lógico e sem lógica, porque não é céu visto pela janela,mas sim visto do quintal. Obrigada por resgatar o pensamento da prisão em que tanto tentam enjaulá-lo.
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