Desejos de uma vida


Isys sentiu seus pés arrancá-la da rede quase forçosamente antes mesmo do sol banhar a comunidade Kamura. Hoje seria seu ritual de passagem no qual ela estaria apta a ser desposada por um líder da aldeia vizinha – os Tamakay. Para ela era um ritual de morte. Seus pensamentos pertenciam a outra. Desde que tinha visto sua imagem no lago tinha se descoberto incapaz de amar Nuylo o guerreiro que havia lhe sido prometido. Sentia-se completamente apaixonada pelo que poderia ser tudo aquilo que sonhou. Seria lhe permitido caminhar pelo verde das matas sem ter de correr atrás das crianças, ela não queria ser mãe, poderia dançar à luz da Lua e tomar banho de rio nua sem ser chamada de coisas que nem sabia direito o que significava, ela poderia desenhar na areia as imagens que vinham à sua cabeça sem que fosse chamada de louca ou fosse chamada aos afazeres domésticos. Ela não se via cuidando de uma família e doando tudo para os outros. Queria doar uma porçãozinha para si mesma. Isso não seria possível ao lado de Nuylo. Era hoje o ritual e era hoje o dia em que ela envergonharia toda a sua parentela? Preferia jogar-se de um penhasco e quebrar-se toda. As comunidades costumam sacrificar pessoas aleijadas. Talvez fosse melhor assim. Ou hoje seria o dia em que assumiria seu amor por si mesma?

500 anos depois dali, Ricardo acordava numa manhã tão igual às outras que chegou a lhes dar náuseas. A enfermeira entraria no seu quarto logo em breve e com a ajuda do auxiliar lhe tirariam da cama para o banho matinal. Sua velha companheira, a cadeira de rodas, aguardava no canto e lhe olhava como se avisasse o inevitável: ele sempre precisaria dela. A vida só seria possível sentado ou deitado. Seu acidente havia lhe tirado os movimentos do pescoço para baixo. Uma vida na qual poderia se locomover fazia parte de um sonho que ele não fazia ideia de quando foi...mas fazia muito tempo. Agora sua vida estava limitada a receber visitas e flores dos familiares e amigos. Estava feliz por não ter mulher e filhos que chorassem ao seu lado o fazendo sentir-se ainda pior. Todo mundo se revezava para fazê-lo feliz. As pessoas não entendem que felicidade é algo co-construído e ele já havia desistido dessa construção. Houve um momento de sua vida em que pode correr pelas matas e desenhar para a Lua. Sonhou várias vezes com uma vida que não sabe se viveu. Nessa vida, nadava e se conectava com a natureza de uma forma só sua. Parecia um sonho, mas era tão real que ele tinha certeza que havia num outro momento alcançado seu nirvana e isso o deixava em paz consigo mesmo. A vida lhe tinha favorecido no passado? Que sonho bom. Seria um sonho? A enfermeira lhe chamou, dormira durante o banho.

220 anos depois do acidente. Muito cansada da vida da grande cidade, Cristinah buscara o refúgio no campo. Havia abandonado tudo. Emprego dito bem sucedido. Morada central de modo que um metrô lhe levava para as partes principais da cidade. Grandes amigos, noites nos cafés com risos e poesia. Parecia uma vida boa. Cristinah, não se via aí, faltava algo. Um outro lugar a esperava. Ela tinha um encontro marcado com alguém em algum lugar que ela não sabia onde era. Um dia, num final de semana de diversão na fazenda com amigos ouviu o sussurro da árvore. Pensou: “devo estar louca, árvores não falam”. A árvore, contudo estava determinada e a seguiu até em casa. De noite ouvia, enquanto dormia ‘seu lugar é dentro de mim’. Coisa mais estranha essa de ouvir árvores, sobretudo se a mesma não está deitada na cama ao seu lado. Ou está? No dia seguinte, Cristinah fora para a editora e disposta a esquecer a árvore falante se afogou no trabalho. Aquele que havia sido seu teto e seu chão durante toda a vida estava ali, seu fiel escudeiro – o trabalho. Quando se viu olhando para o trabalho como se tudo que tivesse feito fosse em função dele, revoltou-se contra o mesmo. Quem você pensa que é? Perguntou olhando para o troféu de melhor editora do ano. O troféu lhe respondeu: “eu sou tudo o que você desejou”. A resposta parecia muito obvia e a confortou por algum tempo. Resolveu voltar para casa a pé refletindo sobre a conversa com a árvore depois com o troféu. “eu sou tudo que você desejou”...”eu sou tudo que você desejou”...enquanto repetia a frase para si mesma observava o idoso sentado ao chão com a perna amputada pedindo esmola, via a mulher negra com seus três filhos vendendo salgadinhos para sobreviver, notou o cansaço no rosto do motorista do táxi parado ao sinal vermelho, sentiu vontade de abraçar o menino com frio que limpava o vidro do carro para ganhar um chiclete. Perguntou-se o que a levou a chegar tão longe e não estar em condições miseráveis: lembrou de toda a sua trajetória de privilégios e percebeu o quão era uma pobre miserável também (de uma outra ordem, mas era). Teve tanto e tudo que desejou foi um TROFÉU? Disse a si mesma. QUE MERDA, SÓ DESEJEI UM TROFÉU? Decidiu nesse dia que encontraria sua árvore, tal como Edmond Dante. E agora, depois de vendida a editora, o apartamento e os demais troféus não mais desejados, Cristinah  morava num chalé simples, construído a partir do tronco de um enorme jequitibá. Ela sentia que havia demorado muito a voltar para casa, mas se perdoava todas as vezes que desenhava na areia seus contos. Perto de seu chalé-árvore havia um rio onde se banhava e nadava nua quando lhe dava vontade sem que ninguém lhe xingasse e atrapalhasse seu momento de amor consigo mesma. Essa vida parecia ter esperado três vidas para ser esse momento só seu. Essa vida que desejou sem nem perceber que desejava era seu final feliz. Cristinah não entendia como, nem porque havia se enganado acreditando que aqueles troféus eram o sentido das coisas todas. Entendia, entretanto que as borboletas precisam de tempo para serem borboletas. Não fazia ideia de quanto tempo havia ficado presa dentro do casulo, mas sabia que agora ela, a terra, a água e a mata estavam vivendo a eternidade das paixões.

Comentários

  1. A viagem agora foi no tempo...

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  2. Dê, que bonita essa história. As vezes, a gente precisa de muitas vidas para sair do casulo. Feliz que Cristinah (Ricardo, Isys, você) viraram borboleta.

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  3. Isso é tão claro pra mim hoje...do quanto pelejamos até nos descobrirmos...parece que às vezes é preciso virar um monte de caco pra ficar inteiro. Lembrei do Ariano e da Babita.

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  4. Mtas vidas, mtos desejos, mtas transformações pra gente entender q é tudo a gente em mtas possibilidades...

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    1. É bem assim...penso que cada vida é uma travessia rumo a um lugar que é o grande segredo das coisas

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