Ele só queria estudar...

Ele era o cara que nunca estava e quando estava só tinha as opções a seguir: bêbado malvado, assistindo futebol isoladamente, dormindo. Pra ser franca, a versão que eu gostava era a dele bêbado quando tinha amigos por perto, pois assim eu poderia ver seu sorriso e via uma versão dele que eu amava. Esse amor tinha a ver com o fato de que eu tinha sete anos e não percebia o que de fato havia por trás daquilo tudo. Era uma risada sofrida e falsa vindo de um homem frustrado pela vida, amargurado pelos tantos insucessos. Ele era o mais velho de uma família de 12 irmãos, dos quais escaparam 7 das agruras do sertão, entre estes estava meu pai. Esse é um conto real de alguém que sempre que falo, falo com amargura. Decidi que ele não será uma parte ruim da minha vida. Mas que eu serei uma parte boa que ele não soube viver.

Quando criança só pensava em ser doutor, queria muito estudar. Amava os números. Sempre (nos cinco anos que lhe permitiram estudar) foi o melhor em matemática. A vida pobre e sertaneja obrigou meu avô (que conheci terno e dócil) a tirá-lo da escola forçado. Ele só queria estudar. É uma cena estarrecedora aquela me narram as irmãs do meu pai. Elas diziam: “ele abandonou o burro carregado de capim e foi para a aula, mesmo depois do pai ter dito que não era mais para ir para a escola. Mas ele era muito teimoso por isso apanhou dentro da sala de aula para aprender a obedecer”. Então meu pai era o menino que insistia em estudar. E assim começou seu ódio pelas mulheres. Meu avô tomou a decisão de deixar as mulheres estudarem e quanto aos filhos, estes iriam para a roça, pois ele precisava de ajuda com a colheita. Lamento por meu pai. Ele viu suas irmãs estudarem e depois casarem e terem filhos e na sua visão amarga das coisas, entendeu que as mulheres atrapalharam seu sucesso. Minhas tias não queriam ser doutoras. Foram educadas para parir, apesar de terem estudado um pouco mais que ele. Essa “escolha” feita por minhas tias tão bem plantada pelo patriarcado, mas muito legítima, causou em meu pai um rancor que eu pagaria por isso. Ele só queria estudar e não teve do Estado, nem da família apoio que socorresse seu sonho. Pobre menino pobre, cresceu sendo um homem ainda mais pobre. Não percebeu o que viveu, sequer que estava vivo, como diz Pepe Mujica, quanto aqueles que passam pela vida em função da compra e venda.

O menino “Bico”, esse era seu apelido de infância, por ter lábios volumosos, cresceu para o homem Raimundo. Aquele que me fez rir uma única vez: num momento de foto em família ele me colocou em suas costas para que eu aparecesse no alto. Sempre que a vejo procuro esquecer as muitas vezes em que nos humilhou e ofendeu (a mim e a minha mãe), tento esquecer que disse claramente que não ajudaria em nada que me levasse a estudar por que as mulheres não fazem nada com os estudos. Tento esquecer que vivi toda a adolescência sentindo inveja das minhas colegas de sala que tinham pais que as beijavam, andavam de mãos dadas, e as abraçavam nos momentos ruins. Sentia tanta inveja delas que o ódio que nutria por ele cresceu vertiginosamente e aquela foto em que ele me suspendia parou de significar alguma coisa. Eu senti ódio por muito tempo. E depois o ódio me anestesiou. Parei de sentir algo por ele. Hoje sinto pena. Vejo que filhos em alguns aspectos podem ser segundas chances de viver coisas que não serão mais possíveis viver depois de um certo tempo. Ele poderia ter sentido um pouco o gosto de ser um doutor através de mim, ele poderia ter odiado menos as mulheres se tivesse conhecido a mim (que ele nunca conheceu) se visse o que eu e minhas amigas podemos fazer com os estudos. Eu poderia ter contado para ele sobre Simone De Beauvoir, Anita Garibaldi, Dandara, Nízia Floresta, Pagu, Jane Marx, Rosa Luxemburgo, Joana D’ark e tantas outras que mudaram a história e ele veria algum sentido no que fez meu avô.

Eu iria buscar o cheiro das senzalas para ele conhecer a origem afro-indígena dele e perceber como chegou longe. Eu seria capaz de ensina-lo tudo que eu sabia em troca de um abraço ou que aqueles olhos negros me vissem somente uma vez e se alegrasse com minha presença.

A dor de ser quem é pode nos tirar de quem pode nos desfazer dessa dor. Entender isso me trouxe de volta àquela fotografia que agora representa como me sinto. Uma parte boa da vida de alguém cujas mãos fortes um dia me ergueram ainda que nunca tenham me abraçado.

 


Comentários

  1. Gente...desculpa o peso do texto...mas esse é o lugar onde sinto que posso me derramar.

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    1. Dê, é a primeira vez que lhe "ouço" falar do seu pai com menos rancor. Com toda a dor que o texto carrega, pois uma história de opções impossíveis não pode ser narrada de outra forma, sinto nele a beleza de uma filha que abraça seu pai ciente de que ele não aprendeu a abraçar de volta. Talvez seja um modo da razão ensinar um perdão possível. Muito orgulho de você, Dê!

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    2. Obrigada, Ritinha. Percebo hoje que o perdão é mais útil para quem perdoa do que para quem é perdoado. Sempre que analiso os erros ou acertos de alguém tendo entender sua trajetória. Em minhas viagens pela mata percebi que o exclui das minhas análises.

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  2. Há mtos abraços perdidos no mundo e uns tantos achados tb. Na vibe musical da última leitura se "ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro" é pq, em alguma medida, o q me matava já não tem esse poder (embora ainda possa ferir)"amar e mudar as coisas me interessa mais".

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    1. Então Rapha, vou por aqui vivendo já que "viver é melhor que sonhar" com um abraço que nunca virá. E escolhi "não sobrar de vítima das circunstâncias". Meu pai é um mesmo violão que resolvi "compor uma nova canção". Respeita Ritinha que a playlist vivida vai dar rock.

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