Insignificante Parte II
...Ah o mar! Que poder ele tem! Florzinha sentiu-se ainda que
insignificante, livre naquele dia. O cansaço que pesava em suas pernas fora
carregado pelas ondas que lhe sussurravam um verso lindo: “essa imensidão pode
ser sua”. Flor sabia que o mar lhe falara sobre outra coisa que não era ele
mesmo. De que imensidão lhe falara a mãe d’água? A pergunta lhe aporrinhava as
escutas. Foi-se ali a matutar. No caminho até a casa grande, “ensimesmou-se”,
pedia silêncio, silenciosamente. O chocalhar das ondas ainda gritavam dentro
dela. O que antes parecia ser nos
ouvidos, agora tomava-lhe o peito e o corpo todo.
De súbito a criança do seu lado diz:
- Flor, vou ler uma história para você.
- Leia, meu menino.
Respondeu servil como sempre, mas algo dentro dela era novo e nada subserviente.
Flor não ouvira uma palavra da história por que outra pergunta lhe atazanava o juízo:
“Por que diabos que não era ela mesma que lia?” Embaixo de seus cabelos
enrolados, desenrolavam-se tantas questões que ela não viu o tempo passar. Por que
lhe roubaram as palavras? Ou melhor, por que ela nunca alcançou o mundo das
letras? Se o mar em toda sua “majesteza” lhe beijou os pés, justo ele que era
um deus vestido de azul, verde e branco, veio e fez massagem em seus pés como
Jesus fez nos apóstolos, por que as letras que eram invenção dos homens não
poderiam lhe beijar as mãos?
Flor ficou intrigada com suas questões e por um instante pensou:
“devo estar cansada demais e por isso avariei das ideias, amanhã a cabeça vai
tá aliviada e essas nuvens vão ter passado. Coisa mais doida essa de preta
querer ler!" Disse para si mesma tentando se convencer daquilo que a vida lhe ensinara
todos os dias. Mas a vida pode ser contraditória e uma ideia fora da caixa, uma
gota d’água, podem mudar o discurso de uma trajetória inteira.
Quando todos foram dormir, Flor reorganizou a casa cuidando
para que o dia seguinte dos patrões fosse impecável como sempre fazia. Flor deitou
e tentou até sorrir. Aquele dia não tinha sido só o melhor dia de sua vida, mas
o primeiro em que Flor percebendo-se ser mais que os olhos podem ver, percebeu que
poderia ser dona de sua história, aquela contada por outros, aquela
administrada por outros. Ela queria sua história para si. Esta história
aparecia para ela agora como um conto no qual ela era a marionete. Soltem-me!.
Foi seu último pensamento antes de ser abraçada por Morpheu. Durante o sono, o
mar não deu sossego, acordou várias vezes sentindo seus beijos nas pontas dos
dedos.
De pé, mais cedo que o normal, fez tudo o que manda a casa
grande moderna e deixando recado com o porteiro, lamentou não poder escrever
seu grito de alforria que dizia: “Estou indo na escola me matricular”. Ela não
entendia bem o que se passava, mas tudo em seu corpo era festa. O som dos tambores
do outro lado do oceano poderia ser ouvido dentro dela. Seus ancestrais comemoravam
em outra dimensão. Era sua primeira decisão sem pedir permissão para alguém. “Então
é isso que é ser livre?” Pensou enquanto uma gota do mar escorria da imensidão
do seu olhar que agora percebia a cidade de pedra branca com cartazes brancos,
manequins brancos, chefes brancos, carrinhos de bebês brancos, uma prisão
branca, disfarçada de cidade moderna para todos.
Dentro do ônibus uma música já ouvida antes, mas nunca
escutada tocava: “saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixem que eu
decida minha vida”...Flor pensou: “esse rapaz também foi tocado pelo gosto do
mar nos pés.” Ainda intrigada ficou a se perguntar onde seus pés a levariam. Por
que ela tinha agora uma certeza: não trabalharia para a família real por muito
tempo.
Voltando para casa armada de um número de matrícula e uma
cartilha foi aplaudida pela patroa que desanimou quando soube que sua lacaia
estudaria à noite, e atrapalharia suas aulas de dança e pilates.
- Como vou fazer, Flor?
O silêncio subversivo de Flor a fez decidir rápido:
- Contrato alguém para a noite e diminuo seu salário.
Flor entendeu que este seria o preço de sua carta de
alforria. Todos pagaram, por que a dela seria de graça? Que seja então.
Seis anos se passaram desde aquela noite. Patroinha nunca
mais fora a mesma. Para azar dela, Flor também não. Cansaço e humilhação
fizeram, às vezes, a negra liberta repensar sua decisão de aprender a ler,
depois de aprender os números, depois literatura, história...e a cada degrau
que ela subia na direção de si mesma, mais forte ela ficava para enfrentar
aqueles que agora lhes apareciam como sempre foram sem que ela percebesse: seus
algozes.
A história lhe mostrou suas origens e Flor entendeu por que
as letras lhe foram negadas. Seu silêncio, agora diferente da mordaça do
passado, era transformado em poesia e jogado no papel que ela guardava numa
malinha e sempre revisitava nos momentos de dor. Desde que aprendera a ler e
escrever a liberta percebeu que poderia colocar para fora suas dores e amores. Na
malinha guardava o segredo de amar o professor de literatura. “eu gosto dele ou
das coisas que ele diz?” Não tinha coragem de falar. Amava secretamente do
mesmo tanto que repudiava agora seus ex-donos (demitidos por ela dentro do seu
coração).
Em seis anos Flor fez o que muita gente não consegue fazer em
doze. Quanto mais aprendia mais ficava livre daquela gente. Continuou a
trabalhar para eles por interesse próprio. A localização a favorecia. Só pegava
uma condução para ir para a escola e tinha a companhia das outras empregadas do condomínio
que ela inspirou a estudar também, mas seus dias ali estavam contados.
Numa manhã de domingo saiu o resultado do exame que a incluía
no tão desejado curso de Letras. Naquele dia, Flor arrumou sua pequena mala e
informou no café da manhã que já era tempo dela ir. Calma e friamente
esclareceu que moraria num quartinho alugado por uma professora do ensino
médio, e faria faxina enquanto estivesse cursando a faculdade. Acostumada a
viver com pouco, isso lhe parecia a promessa de imensidão do mar. Depois do anúncio da partida, patroinha teve
um achaque arrancando-lhe a mala da mão dizendo que ali tinha objetos roubados.
Ali estava todo o tesouro de Flor. Enlouquecida por ver aquela preta tomando um
lugar que não lhe fora dado, a mulher descontrolada abriu a mala de Flor e rasgou
todos seus escritos e ao ver a dor no rosto da moça sentiu que cumpriu seu papel.
Enganou-se mais uma vez. Flor teve poucos minutos de desespero até lembrar que
a imensidão lhe pertencia então disse com serenidade: “Não tem problema, o que
as letras me deram, você não pode me tirar”.
Usufruindo mais uma vez de sua liberdade, Floriana encaminhou-se para o
mar, chegando lá agradeceu lhe devolvendo algumas gotas de alegria e ouviu: “Essa imensidão pode ser
sua”.
Quando você é tocado tão intimamente por alguém , é indelicado não tocar de volta. Obrigada Ritinha e Flor...por serem vida em mim.
ResponderExcluirSua Flor, Florinda, é o sonho de minha Floriana. Quando Floriana me chegou (ela me apareceu e por dias fiquei ouvindo seu sussurro no meu ouvido), me disse que eu devia terminar a história dela com ela sonhando com o mar. Quando sentei para materializar Flor, ela disse que tudo bem parar no mar. Acho que ela me disse para parar lá porque sabia que falaria no seu ouvido,Dê, a continuação de sua história. 😍
ResponderExcluirgente, adorei essa coisa a quatro mãos, duas cabeças e, intuo, um só coração...
ResponderExcluirBem assim...aquela friccionada na linha do tempo que gera uma nova história de alguém que poderia ter tido outra trajetória
ExcluirTambém, Rapha. Quando Dê falou comigo de continuar o conto,a primeira coisa que eu disse foi que nunca tinha visto um conto com duas autoras. Acho que tem uma mágica da arte nessa coisa toda. Minha Floriana e a Flor da Denise são e não são a mesma. Como um universo cabendo em outro.
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