O fim do mundo
Puxou o pé pra baixo do lençol.
Não que sentisse medo, mas tinha gastura. Era o que dizia.
Sentiu o sono pertinho, sensação boa. Não gostava quando achava que estava caindo e as pernas se mexiam com vida própria, toda vez um susto, coração disparado. Igual a quando sonhava com água, já sabia, que corresse pro banheiro ou passasse a vergonha de levantar molhado.
Uma noite sonhou que se afogava, ficou preocupado em respirar, acordou com o quente escorrendo pela perna, oh, vergonha medonha... Tica ficou rindo o dia todo dele. Emburrou. Depois achou um jeito de jogar uma minhoca nela. Ela chorou, alguém ralhou, mas não pediu desculpas, foi mau de propósito. À noite rezou e pediu perdão à Nossa Senhora, que intercedesse por ele. No outro dia achou de ser muito bom com Tica, sentiu remorso. Deu até um cajuzinho maduro, que achou perto do cupinzeiro da cerca de baixo, pra ela (comeu uns dois lá mesmo, mas não contou essa parte). Tica fez careta na primeira mordida, mas logo a boca acostumou com o travo e ela riu com o caldo escorrendo um pouquinho. Limpou com as costas da mão e cuidou de não encostar na roupa, dava nódoa.
Afundou um pouco a cabeça no travesseiro. O primo chegava daí uns dias, aí teria mais um companheiro. Queria ver a cara dos meninos no dia do jogo no campo ao lado da venda, o primo era bom goleiro, já tinham combinado da última vez que ele seria o titular e ele disse que ia treinar todo dia, pra não deixar passar nada. Aí seria a desforra dos últimos jogos. Sentiu um começo de alegria, mas não queria se empolgar muito. Lembrou do que o pai falava, “a empolgação turva a visão, embaralha o juízo; é preciso ser comedido”. Tentava, mas não conseguia muito, quando dava conta já se via correndo o campo, comemorando a vitória, igual aos jogos que via na televisão, de domingo, único dia que o pai deixava ligar a danada. Nos outros dias era só enfeite na sala, que não acumulava poeira, “pra não gastar energia”, ele dizia.
O primo era menor que ele, mas era danado de esperto. Uma vez contou que estava planejando uma expedição para o fim do mundo. Primeiro desconfiou que era mentira, fim do mundo não existia. Depois, de tanto o primo falar e contar os detalhes, pediu pra ir junto. O primo disse que ia pensar. Na hora ficou com raiva, depois prometeu guardar metade do seu doce de leite com marolo pra ele, se o deixasse ir. Regateado e acertado. Ia. Não foi, no dia combinado adoeceu. Dois dias de febre e dor de barriga, uma caganeira que o amoleceu por uma semana. Precisava pagar o primo ou não? Matutou nisso um bom tempo. O pai diria que sim, foi tratado. Rodeou o primo com a conversa na oportunidade do acerto. O primo foi bom, pegou só um pouquinho do doce e desconversou sobre outra ocasião. Na hora ficou agradecido, depois sentiu uma pontada de raiva, fora enganado? Tirou por menos, mas ficou com a história engasgada. Esperava ainda oportunidade de revanche. O primo era esperto e ele paciente.
Essa história do fim do mundo rondou seu pensamento por muito tempo e, de quando em vez ainda voltava. Tentou perguntar pro pai, com muito rodeio, não queria parecer tolo. Tica dizia que ele era bobo, que o fim do mundo devia ser muito longe, tão longe que se o primo fosse só voltava velho de lá. É, Tica tinha alguma razão, mas não lhe deu esse gosto. Guardou o silêncio. Cismava demais nisso.
Ouviu um coaxado longe, amanhã ia pros lados do brejo. Será que o fim do mundo era num barranco alto ou numa beira de rio sem outra margem? Será que os bichos conheciam e escondiam aí suas crias pra ninguém achar? Será que o fim do mundo era um lugar ou um tempo, como dizia a mãe repetindo o padre Inácio? Vai ver o fim do mundo era só o fim da estrada mesmo e, depois, só uns matos emaranhados que ninguém animava tirar. Mas, como é que o primo sabia que ali era o fim do mundo? Será que tinha placa? Ah, agora achou um jeito de pegar o danado... Queria ver ele se enrolar pra explicar. Como não pensou isso antes?! Já nem importava mais se iria ou não. Achou melhor o primo não ser o goleiro titular. Vai que ele resolvia perder a propósito só pra revidar... Amanhã falava com o Júlio e já começavam a treinar, ele mesmo seria o titular, por garantia. Melhor não arriscar.
Tô parecendo trem descarrilado... rsrs
ResponderExcluirMais um.
Tia, amei o texto. Saí agora de uma reunião que me tirou do sério e abri o e-mail torcendo que alguém tivesse escrito. Graças aos trens descarrilados! Adorei a leveza, a inocência e a magia que conto trouxe. Obrigada!
ResponderExcluirEita trem bão...obrigada Rapha...foi bom demais ler essa delícia leve...
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