O sábio

Nascerá com poucos cabelos escuros e crespos, olhos redondos bem negros. Era toda negra. Ainda suja das entranhas da mãe, chorara menos do que os outros bebês, apenas o suficiente para sinalizar que estava viva e saudável. Se os médicos tivessem tido o cuidado de lhe olhar nos olhos, teriam percebido que ela carregava neles a força de toda sua ancestralidade. Não só a ancestralidade negra, e sim de toda humanidade.

 Chamaram-na Fitea. E, não tardou para que as gentes que lhe conheciam notassem que ela encarnava não só a fortaleza da humanidade em seus olhos, mas também a sabedoria construída ao longo dos milênios pelos seres que a antecederam. Aos três anos, Fitea começou a ler. Sendo filha de um pai que sabia apenas assinar seu nome e de uma mãe que conseguia somente reconhecer a diferença entre letras e números, por si só aprender a ler sozinha já seria um fenômeno surpreendente, porém, não para quem convivia com a menina. Aos cinco, ganhou um caderno e um lápis e nele gravou pensamentos profundos.

Na pequena vila conservadora onde morava, aos seis, Fitea já havia operado um milagre. Vizinhos batiam na porta de sua casa para ouvirem seus conselhos. Quem poderia imaginar que as ideias de uma criança poderiam ser respeitadas por adultos? Ainda mais de uma criança menina em uma sociedade em que as mulheres eram vistas como espécie naturalmente inferior? Talvez, Fitea fosse ouvida e procurada porque seus concidadãos imaginavam-na como um espírito que, só por uma casualidade divina, achara de habitar um corpo infantil e feminino.

Fitea, contudo, não parecia se preocupar com essas questões. Sabia-se menina. Brincava de amarelinha na calçada em frente de casa, desenha na terra com graveto e ria das piadas inocentes como as outros infantes. Quem não parasse para prestar atenção nela não saberia diferenciá-la de outras negrinhas de vestido de chita florido que inundam o mundo. A sabedoria de Fitea se evidenciava na compreensão complexa que tinha do universo e da vida que ela era capaz intuir e traduzir em palavras. Nunca tendo amado no formato dos adultos, dizia coisas precisas e certeiras sobre o amor. Semelhantemente, poderia falar sobre política, medicina, cuidados ambientais, religião, arte e tecnologia.

Com o tempo, Fitea passou a encurtar seus discursos. Se aos sete, quando perguntada pelo prefeito qual a melhor forma de administra a cidade, ela demorou-se em explicações detalhadas e escreveu noventa páginas; aos treze, diante de uma questão da mesma envergadura, tratou-a em uma conversa de quinze minutos e entregou ao governante duas páginas de frases curtas. Sua mãe, que nem sempre entendia o que Fitea dizia e que nunca fora capaz de ser tocada pelas letras escritas dela, um dia indagou-a por que ela respondia menos agora. Está cansada de dar conselhos? Fitea sorriu-lhe com ternura e chacoalhou a lentamente a cabeça. Não, mãe, falo menos pois me dei conta que as pessoas precisam de conselhos incompletos. Em um livro de aforismas escrito aos dezesseis, ela diria que os bons conselhos requerem mistérios para ser úteis.

Aos vinte, aqueles e aquelas que procuravam Fitea seguiam sendo bem acolhidos e ouvidos com toda dedicação, mas em troca de suas histórias recebiam uma ou duas frases. Todavia, a fama de sua sabedoria só aumentava. Os que peregrinavam até sua velha casa de paredes sem pintura, saiam sentindo-se, invariavelmente, mais iluminados. Nem sempre mais felizes, é verdade. Pois a luz, às vezes, clareia as dores e avoluma a tristeza dentro da alma.

Aos vinte e três, em uma noite de lua cheia que já ia alta, Fitea entrou no quarto dos pais. Ao lado da cama sussurrou palavras de amor a ambos, beijou-lhes e abraçou-lhes com aperto. Coberta de lágrimas, abriu um largo sorriso que indicava que era chegada a hora de partir, de retirar-se para tornar-se uma com o mundo, de fundir seus pés com o solo, seu tronco com o das árvores e seus cabelos com o vento. Era tempo de ir, exatamente porque sua presença jamais poderia ser apagada do coração de seus pais, de seus amigos, de sua vila.

Na mesa da sala, Fitea deixou seu último escrito. Uma folha na qual constava no topo o nome da vila e a data de sua partida. No meio da folha nenhuma palavra, apenas a brancura do papel. Ao final da carta muda lia-se “com amor” seguido de um ponto final bem marcado.

Na manhã após aquela noite de lua cheia, a vila repercutiu o sumiço de Fitea. O silêncio da carta de despedida deu espaço para todas as interpretações. Imaginaram-lhe morta, arrebata aos céus, recolhida à vida eremita, desfeita no ar. Juntaram a carta com todos os livros escritos pela menina ao longo de sua vida na vila e enviaram aos intelectuais do reino. Intrigados pela força gentil da sabedoria ali encontrada, reuniram-se em intermináveis congressos. Pactuaram, por fim, que os escritos seriam publicados e seriam disponibilizados em todas as bibliotecas do mundo. Para tanto, era necessário um único ajuste: a autoria. Ao invés dos livros receberem o nome de Fitea e uma orelha contendo a história da menina negra da pequena vila, atribuíram-lhes a um sábio europeu de olhos esverdeados, pele da cor da neve e linhagem nobre.


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