Repertório
A primeira vez que vi Eduardo
foi no dia em que me mudei para o edifício “São Jorge”. Entrei no elevador com
uma caixa de papelão com parte das minhas roupas e alguns livros preferidos e
proferi um “Bom dia” pleno de excitação pela mudança – que representava para
mim a ação mais revolucionária dos meus, então, 21 anos - e cansaço por que
aquela já era, provavelmente, a trigésima vez que eu subia carregando meus pertences
para o quitinete 505. Em resposta ao meu cumprimento, Eduardo abriu um discreto
sorriso com o canto da boca e fez um simpático abano de cabeça.
Deste dia até nos
tornarmos melhores amigos, se passou quase 1 ano.
Quando me mudei para o
apartamentinho 505 que ficava a 25 minutos de caminhada da universidade na qual
ingressei, tudo que eu desejava era sentir a ventania da liberdade. Finalmente,
eu estava longe das regras dos meus pais – pelo menos, longe o suficiente para
que eles não soubessem que eu as estava quebrando –, estabelecendo meu próprio
horário de dormir, saindo sem pedir licença e sem ter que dar satisfação de
quando voltaria. Naqueles primeiros meses, tudo o que eu pensava era como era
maravilhoso cuidar do próprio nariz e como a vida de universitário era muito
mais legal do que aquela do colégio. Com o tempo, claro, o costume tirou o
brilho da independência. Eu começava a acreditar que talvez valesse a pena
trocar dar satisfação sobre minhas saídas por um almoço prontinho quando você
chega de uma manhã de aula na qual todos os seus neurônios unidos não conseguiram
acompanhar o que raios o professor de Cálculo I estava dizendo. A rotina de
morar longe ‘de casa’ – porque agora eu me sentia dividido em duas casas: a
minha sozinho na quitinete 505 e a minha casa original com meus pais e irmã –
também me trouxera saudade. Saudade da família, dos amigos do colégio, e do aconchego
que alguém que viveu uma boa infância teve.
Foi nessa época de ‘cair
na real’ que eu passei a reparar mais em Eduardo. Ele era um cara um pouco mais
velho que eu, talvez com seus 23. Um rapaz de pele branca, de altura mediana,
de olhos e cabelos castanhos que, se não chamava atenção por sua beleza, tão pouco
causava uma impressão ruim aos sentidos. Eduardo morava no mesmo andar que eu,
no 503, e no entanto, desde que eu comecei a, realmente notar sua presença,
nunca o vi receber visitas ou participar das festas e algazarras que os
estudantes moradores do prédio faziam constantemente (só havia descanso quando havia
semana de prova!) no pequeno salão que ficava no térreo.
Foi num dia em que eu
estava me sentindo muito só e no qual eu já tinha me dado conta que meus ‘antigos’
amigos haviam se perdido para sempre no vórtex de um passado irrecuperável e os
‘novos’ eram mais colegas de farra do que pessoas com quem eu poderia partilhar
intimidades que esbarrei com Eduardo no corredor. Pedi desculpas, desconcertado,
e ele, simplesmente sacudiu a cabeça e chacoalhou a mão direita dando a entender
que tudo estava bem. Acho que foi a gentileza embutida naqueles gestos que me
fizeram convidá-lo, sem realmente pensar sobre o que eu dizia, para irmos na minha
quitinete tomar um café com pão.
Meu convite inesperado
impactou Eduardo e seus gestos gentis deram lugar a uma visível agonia. Seus
olhos mexendo rapidamente para lá e para cá, como quem buscava algo na memória,
seu sorriso simpático sumindo e a mão esquerda com o dedo em negativa me
indicando a resposta. Três segundos depois, eu já estava só no corredor e
Eduardo, pela velocidade com que saiu pelas escadas, já deveria estar na
portaria. Estranhei tudo aquilo e fiquei constrangido. O nervosismo de Eduardo
ao meu convite me fez cogitar que eu tinha, sem querer, quebrado algum
protocolo social. Voltei para minha solidão e, ao invés do pão, tomei café
lendo um texto da disciplina de Fundamentos Básicos de Economia Política que eu
tivera mais cedo. Ler textos das aulas era um jeito de forçar as ideias em outra
direção.
Fiquei lendo até que, em
torno das 20:30, ouvi uma batida na porta e um pequeno papel empurrado por
baixo dela. Eduardo me fizera um bilhete. Nele, ele dizia que sentia muito a
forma como havia reagido ao meu convite naquela tarde. Explicava que tinha um
problema de fala e que, gostaria muito de se desculpar por tudo aquilo me preparando
um jantar no dia seguinte. Como ele havia deixado o recado por baixo da porta e
não parecia estar aguardando lá, pensei por uns instantes em tudo aquilo e, na
minha ignorância sobre seu ‘problema fala’, achei que o mais seguro seria poupá-lo
de um novo evento constrangedor e responder também por bilhete. Na folha de caderno,
escrevi que topava a proposta e que bastava ele bater no meu apartamentinho
quando fosse o horário mais conveniente para minha ida.
Depois disso, tentei
voltar ao texto, mas o insólito de tudo aquilo mexeu comigo e me pus a tentar
resgatar na lembrança se eu já tinha ouvido Eduardo falar alguma coisa. Como
não achei nenhum registro de sua voz na minha investigação mental, conclui que
ele deveria ser mudo. Inferi que seu nervosismo tinha a ver com o fato de quase
ninguém entender libras (eu não sabia e não conhecia ninguém que soubesse) e, portanto,
dele ter que recorrer às mímicas para se comunicar. Imaginei que jantar com ele
poderia ser complicado, uma vez que não seria possível conversar fluentemente, porque
nem muito bom em interpretar mímicas eu era. A perspectiva de uma refeição silenciosa
me inquietava. Aos 21, eu acreditava que estar em silêncio na presença de outra
pessoa era sinal de inadequação e de desencontro. Mas, o bilhete já tinha deslizado
na fresta da porta do 503 e, agora, só me restava torcer para que, pelo menos,
ele fosse um bom cozinheiro.
No dia seguinte, pouco
antes das 19:00, Eduardo bateu na minha porta e, com um sorriso largo moveu a
mão como quem dizia “vem comigo”. Entrei na quitinete dele e me deparei com um
espaço bem organizado – a minha mais parecia um cenário de um filme pós- apocalíptico
onde roupas, pratos sujos e canetas disputavam um pedaço de chão – com uma mesa
de quatro lugares arrumada e sobre ela uma travessa com uma lasanha apetitosa. Apesar
do cheiro delicioso da comida e da limpeza impecável do local, o que mais chamou
minha atenção foi a grande estante que ocupava quase completamente o minúsculo
corredor que levava até o quarto. Em suas prateleiras havia dezenas de caixas
de sapato, cada qual repleta de CDs ou fitas k-7. E, exatamente no meio da
prateleira central, avistava-se um micro system gradiente preto, com CD player,
dois toca-fitas e um reluzente "dial" para sintonizar as estações de rádio.
Sem emitir nenhum som
vocal, Eduardo, não teve dificuldades de exibir sua educação. Ofereceu-me
bebida e aceitei tomar com ele uma cerveja. Notei que junto a um dos pratos
disposto à mesa havia uma caderneta e uma caneta, compreendi que Eduardo também
tinha se dedicado a pensar estrategicamente em como lidar com nosso desafio
comunicativo. Ocorreu-me, inclusive, que ele poderia já ter feito isso várias
vezes em sua vida, afinal, só porque eu não o vi receber nenhuma visita, não
quer dizer que ele não recebia nenhuma.
Com a cadernetinha como
apoio, senti-me como um estrangeiro passeando em um país cuja língua não
domina, mas que tem um daqueles pequenos guias de viagem – acredito que hoje
isso seja raro, mas quando eu tinha 21, no começo dos anos 90, as livrarias
eram cheias deles – que trazem frases básicas para o viajante se fazer entender
junto aos nativos. Desejoso de evitar o incômodo do silêncio – no caso, não da
ausência de som, mas da falta de interação contínua – perguntei sua idade, se
era natural da cidade, se tinha irmãos. Ele me respondia, às vezes, com gestos,
às vezes escrevendo e eu ia emendando às suas respostas minha própria
apresentação, talvez, como uma tentativa dele não ter que gastar as páginas de
sua caderneta com as mesmas questões para mim. Três cervejas e meia lasanha
depois, eu criei coragem para perguntar o que, realmente, queria saber: “Você é
mudo de nascença ou sofreu algum acidente?” Eduardo colocou seu copo na mesa e olhou-me
seriamente por dois segundos antes de agarrar a caderneta. Enquanto ele
escrevia, me repreendi por ser tão abelhudo e estragar as coisas com essa minha
mania de falar antes de pensar. A palavra “desculpe” já estava quase saindo da
minha boca, quando ele me entregou o papelzinho:
Roberto, eu não sou
mudo. Tenho uma condição raríssima ainda não nomeada pela medicina. Meu
vocabulário falado, vamos chamar assim, é restrito, o que torna difícil minha
comunicação por meio vocal com as pessoas
A repreensão que eu me
dirigia poucos segundos antes, apagou-se frente a curiosidade. E eu, tentando disfarçar meu desejo de saber com palavras delicadas, pedi que ele falasse comigo usando seu vocabulário
restrito. Ao invés de me responder com palavras faladas, ele voltou a alcançar
a caderneta:
Roberto, a minha
restrição é um pouco mais complicada do que você está imaginando. Sei que irá
lhe parecer inacreditável, mas só consigo falar usando trechos retirados de
músicas. Ao falar, não consigo separar palavras por palavras, por isso estou
limitado a alguns trechos exatos de certas músicas. Isso significa que, para me
entender, você precisaria analisar o contexto, considerar algumas palavras e
desconsiderar outras.
Enquanto eu lia, ele já
redigia outro bilhete:
Já tive diversas
experiências de tentar me comunicar usando minha voz e sofrer bastante. Por
isso, opto por me expressar por outros meios. Espero que possamos seguir nosso
jantar conversando como estávamos fazendo.
Fui lendo os bilhetes como
se as palavras fossem espetos enfiando na minha carne. Fui tomado por uma
profusão de sensações e, principalmente, pela vergonha. Eduardo havia aberto sua
casa para mim, me oferecido sua comida, sua cerveja, sua gentileza impecável e
eu o havia retribuído com falta de empatia, fazendo dele um animal de zoológico
que é enjaulado para atender às frivolidades humanas. Senti meu rosto esquentar
e as lágrimas a beira de escaparem. Eduardo devia estar me observando
atentamente, pois antes que eu me desse conta, ele seguro com uma sutileza
firme minha mão e sem soltá-la falou: “Não se afobe não, que nada é para já”.
Ouvir sua voz de uma
forma tão inesperada, como um consolo a uma vergonha que eu merecia sentir, me
tocou tão profundamente que escondi meu rosto com braços e chorei. Sem
conseguir mostrar minha face molhada, agradeci e me desculpei com Eduardo. Como
um cano que não suporta a pressão da água e se rompe, o reconhecimento de minha
culpa naquela situação toda emendou-se numa fala sobre uma série de sentimentos
que estavam guardados em mim, muitos dos quais eu mesmo desconhecia. Não sei
por quanto tempo meu vazamento sentimental durou, sei, contudo, que quando levantei
meus olhos, encontrei Eduardo enxugando com o guardanapo seu próprio rosto. Naquele
instante, senti que quase poderia tocar o laço de amizade que nos atou: um
enlace feito no e pelo encontro de nossas vulnerabilidades.
Depois disso, tudo ficou
mais leve. Enchemos nossos copos com o resto da cerveja e brindamos. Contei a
Eduardo da minha dificuldade com as matérias na universidade, falei que já
havia até cogitado desistir. Ele, balançou a cabeça dizendo “Não pare na pista,
é muito cedo para você se acostumar. Amor não desista, se você para o carro
pode te pegar”. Concordei com ele e, rindo pontuei “Acho que o carro é do
professor de Cálculo I”.
Em certo momento, ele
enunciou com voz grave: “Tenho 25 anos de sonho e de sangue”. E me contou do
sofrimento de ser uma criança diferente, dizendo: “Se você vier me perguntar
por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos, lhe direi: amigo, eu me desesperava”. Temperou suas dores
com suas conquistas, usando Rita Lee: “Resolvi botar as asas para fora, porque,
quem não chora daqui, não mama dali”. E, também com ela me falou de força que
aprendeu a ter: “Minha saúde não é de ferro, não é não, mas meus nervos são de
aço”.
Perguntado se tinha fé,
ele me trouxe Ivan Lins e sua Cartomante: “Tenha paciência, Deus está contigo,
Deus está conosco até o pescoço”. E, ao falar de seu amor pela colega de
trabalho 10 anos mais velha ele recorreu a Caetano, Chico, Tom, Paralamas do Sucesso,
mas, encerrou o assunto rindo e comentando “E quem um dia irá dizer que existe
razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?”
Ao se despedir de mim naquela que seria a primeira das incontáveis vezes que comeríamos e beberíamos juntos, dentre todas as possibilidades de seu repertório, Eduardo escolheu me abraçar e me sussurrar Cartola:
“Ainda é cedo, amor”.
Ao que lhe respondi:
"Já vou embora, mas sei que vou voltar. O amor de agora, para sempre ele ficar"
Meninas, um conto que reverbera um pouco da potência de vocês em mim.
ResponderExcluirRitinha, Ritinha, Ritinha! Que delícia de texto! Queria muito que todos nós nascessemos com a condição de Eduardo! Nossa comunicação seria mais poética. Lembrei do Bumblebee, o robô que usa a frequência de rádio pra se comunicar e muitas vezes usa a música. Amei esse conto demais da conta.
ResponderExcluirPreciso dizer duas coisas:
ResponderExcluir1- Playlist do Ideias atualizada com sucesso!
2- Genial! Esperando, ansiosa pelos próximas conversas...
Idemmm. Imagino Eduardo sendo advogado...
ExcluirAntes de sentar para escrever, o conto seria sobre a vida do Eduardo com a "síndrome de playlist" (depois me toquei que Playlist é um nome novo entre nós e que ia ter um furo no conto se o usasse). Quando fui escrever, saiu isso aí. Mas, ainda tenho vontade de em algum momento contar a "gênese" e a vida pregressa de Eduardo.
ExcluirNo mais, que massa você ter colocado as músicas na nossa playlist!!