REUNIÃO DO CONSELHO
Dia
de reunião do conselho. 40 seres e, eu, o CEO. Tem gente que pensa que o céu é
um lugar cheio de harpas, de anjinhos sentados nas nuvens e de paz perpétua.
Nada mais equivocado. Eu bem poderia explicar, mas, convenhamos, há guerras por
muito menos. Sem falar que isso exigiria refazer todas as produções
filosóficas, exotéricas e afetaria o mercado de textos sagrados. Ninguém quer
isso. Lidar com o pessoal do marketing é um horror. São tão chatos que, tempos atrás, cogitei ceder ao grupo do colegiado que me pede, há três séculos,
para colocar em pauta o problema do atendimento do setor responsável pela publicidade
e comunicação da organização.
Para
quem não entende de coisas divinas é difícil compreender como a organização
está estruturada. Mas, foi meu pai, o antigo CEO, que projetou tudo. Imaginem a
dificuldade de convencer um ser onisciente de que mudar aqui e ali seria mais
adequado. Sendo realista, ninguém ousava questioná-lo e, qualquer um que,
naquela época, começasse, no intervalo do cafezinho, a puxar o tema já era
lembrado que o chefe era onipresente. De todo modo, a organização funciona. As
galáxias, os sistemas solares, as estrelas, os seres orgânicos de portes macro
e micro, tudo segue uma lógica e só precisam de reparos muito raramente. Papai
gostava de automatizar os processos. Por isso, geralmente, uma coisa serve para
anular a outra para que nem trabalho de recolher os restos a organização
precise ter.
Mesmo
com tudo automatizado, papai cansou e disse que não era porque era atemporal
que não teria direito a se aposentar. Papai não é fã do neoliberalismo. Como
ele sabe tudo, sabe que lucro alto e de curto prazo é receita certa para
revolução trabalhista e isso dá muita dor de cabeça. Com sua aposentadoria, eu
assumi o cargo. Como ele já não estava mais preocupado com as questões da
organização, os funcionários se sentiram à vontade para deixar correr na boca
pequena que esse regime monárquico de sucessão era ultrapassado e injusto. Eu
mesmo ponderei que seria mais justo que o diretor de inovações assumisse, mas,
se vocês mortais já tem problemas com a autoridade patriarcal, imaginem minha
situação...
Tomei
posse como CEO a pouco mais de três milênios. Se soa muito para você, lembre-se
que, para quem é imortal, suas medidas de tempo são inadequadas – pensei em
dizer “recolha-se a sua insignificância”, mas me recordei que vocês são
sensíveis e não queria ser taxado de pedante. Minha primeira ação como CEO foi
uma reação ao burburinho da sucessão, chamei os chefes de cada seção, um
representante de cada classe – sim, tem classe, só porque é divino não quer
dizer que é maravilhoso – e um membro da comunidade externa. Claro, claro, não
é comunidade externa propriamente porque como diz nosso slogan: “se existe, é
nosso”. No caso, o ideal seria dizer, um representante das criaturas. A
princípio, a comunidade indicou um buraco negro, porém, dissuadi-los alertando
que os demais conselheiros poderiam achar a escolha uma sinalização de
radicalismo. Os buracos negros não são bons em diálogo e, mal se pode chegar
perto deles sem evaporar. Por motivos que desconheço, optaram então por uma
minhoca. Toda reunião eu ficava preocupado de alguém pisar nela e termos um
furdunço (recebi uma notificação recente de que as criaturas agora têm um sindicato).
Mas, como já tinha interferido em outro momento, não problematizei. Enfim,
voltando ao ponto, o que importa é que democratizei as decisões mais relevantes
da organização.
A
cada século temos uma reunião do conselho gestor, 40 seres. Cada qual de uma
espécie. Cada qual com suas filigranas. Muitos adorados mundos afora, com seus
próprios textos e regras particulares. Ninguém falava, mas todos sabiam que o
conselho podia ser dividido em 4 panelinhas. Os meus puxa-sacos; os saudosistas
de papai; os alternativos; e, os ambiciosos. Fora das panelinhas, a minhoca.
Arrastava-se pela sala de reuniões, ocupava sua cadeira forrada de terra e
restos de matéria orgânica e, limitava-se a assinalar com o corpinho anelado
seus votos. Nem comia da bolachinha no centro da mesa, nem bebia do seu copo
d’água.
Hoje
estou tenso com a reunião. A pauta vem sendo debatida ao longo dos últimos 5
séculos e, honestamente, decide monocraticamente que ou ela é encaminhada hoje
ou eu simplesmente a engaveto. Quem pediu a pauta foi a turma dos ambiciosos.
Como eles estavam se engalfinhando porque um deles perdeu o planeta no qual era
reverenciado no ciclo de automação estabelecido pelo papai, alguém deu a
sugestão de que a organização autorizasse o povoamento de um dos tantos mundos
vagos. Como eu ainda estava me habituando à rotina, achei que o melhor seria
acatar a pauta e evitar a pecha de autoritário ou de falso democrata. Se você
nunca viu uma divindade arrependida, cá estou eu para desvirginar sua vista!
Nas
palavras de vocês, eu poderia descrever as 5 derradeiras reuniões como um
inferno. Aqui na organização não temos essa expressão. Até porque, o rapaz que
vocês associam ao inferno é da turma dos meus puxa-sacos. Um cara legal e
criativo, se querem saber. Há 5 encontros estamos discutindo qual espécie irá
dominar o planeta. Porque o que interessa quando se cria a vida é o modelo
básico, o resto é só jogar para o pessoal do setor de design que eles criam em
cima. Mais ou menos como vocês e os celulares. Muda uma besteirinha, aumenta o
preço, mas não altera nada de maior na carcaça.
Há
5 reuniões, eu presencio as panelinhas soltando piadas e indiretas umas para as
outras. Pois, se os ambiciosos querem um cantinho de adoração e sacrifício para
o coleguinha, os saudosistas do papai desejam replicar uma criação utilizada no
“Proxima b” no segundo éon após a fundação da organização, os alternativos visam
implementar um modelito não poluente resultado de mix de goiaba com polvo,
enquanto os puxa-sacos ficam tentando decifrar qual opção me agrada mais e
defendê-la.
Cheguei
na sala e, pela primeira vez em 3 milênios, não desejei bom dia. Sentei-me na
cadeira e, antes que a turma dos puxa-sacos viesse me perguntar o que estava
havendo, proferi minha decisão: ou resolvemos a pauta hoje ou cancelo-a. Sem
sorri, complementei: vou abrir 5 inscrições para os argumentos finais, 10
minutos cada, e depois disso, votaremos. Antes que eu terminasse essas
explanações percebi que os ambiciosos acessavam telepaticamente os funcionários
do setor jurídico, os saudosistas cochichavam entre si dizendo que sabiam que
eu nunca poderia ter substituído papai, os alternativos planejavam uma passeata,
e os puxa-sacos ligavam para minha casa para saber se eu havia sofrido algum
dissabor recentemente.
Os
argumentos finais foram mais do mesmo. Cada panelinha escolheu seu
representante mais articulado e, após 40 minutos, eu já quase convencido que a
votação seria um fiasco, a minhoca se movimenta na sua terra úmida dando a
entender que gostaria de ser a quinta inscrita. O choque foi tamanho – sim,
quase todos os membros do conselho têm poderes telepáticos, mas ninguém aguenta
ficar com o radar de pensamento online direto – que até o clima de animosidade
arrefeceu. Concedi, momentaneamente, a capacidade de fala à minhoca – era um
dos benefícios que acordei com o pessoal na assembleia com a comunidade
externa. Para espanto geral, ela teve um domínio linguístico impecável: claro,
ordenado, racionalmente bem fundamentado e esteticamente envolvente. Sua fala
foi tão acachapante que o resultado da votação foi unânime em favor de sua
proposta.
Quando
a reunião terminou, pedi para minhoca ficar para conversarmos – optei por tornar
a habilidade de fala dela permanente! Conversamos. Entrei em contato com
pessoal do marketing. Disseram-me que escrevesse esse texto informando a vocês
que de hoje em diante, ofícios, orações, cultos e demandas de toda ordem devem
ser encaminhadas à nova CEO da organização.
Pessoas, mais um.
ResponderExcluirMenina...eu vi todo o colegiado e fico com a minhoca também...voto na proposta dela.
ResponderExcluirkkkkkkk adorei! Mto bom mesmo!
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