A insidiosa realidade das coisas
A insidiosa realidade das coisas materializava-se naquele maldito sutiã. Melhor definição de “bonitinho, mas ordinário” estava ali, Nelson Rodrigues não sabia de nada. Quando o viu ficou doida, quis porque quis, nem reparou no acabamento, aquela cor que não sabia bem o nome, marsala talvez, a renda fazendo o acabamento do bojo, os ajustes em metal delicado, tudo lindo. Só não viu os detalhes. Da primeira vez achou que por ser novo, da segunda que por ter lavado, da enésima descobriu o fio de nylon e a aspereza do elástico queimado na emenda da alça, pegava na escápula, incomodava.
Entrou no elevador e apertou o andar quase irritada, dois homens subiam, não arrumaria a alça do sutiã ainda. Olhou para o vidro querendo distração, os elevadores panorâmicos tinham essa vantagem, se bem que à tarde era uma verdadeira estufa, todos evitavam, só os que não sabiam usavam nesse horário. Viu uma mancha no vidro, pelo lado externo, parecia que um inseto havia se chocado ali, riu pensando nisso, era impossível. Será?
A porta abriu, ela desceu, os homens ainda subiriam. Foi até sua mesa para deixar a pasta e pendurar a bolsa na cadeira. Dois ou três “ois” até chegar e seguir para o banheiro. Chegava cedo, uma das primeiras, gostava de um pouco de silêncio para pegar o ritmo do dia. Desde que aboliram as salas e fizeram o espaço aberto sentia seu rendimento oscilar. Detestava aquilo, tinha a sensação que precisava socializar o tempo todo, era opressivo. Se estava calada era, “mas você está tão quieta”, se agitada “nossa, tá com a corda toda”. Quando é que as pessoas entenderiam que esse tipo de observação, além de desnecessária, era invasiva? Que alívio ajeitar essa alça! Ah, e essa agora, menstruada. Esperava só para a próxima semana, que saco! Pegou um absorvente na caixa coletiva, precisava colocar uns ali, essa calcinha era confortável, mas péssima para usar menstruada, não segurava o absorvente no lugar, dançava, se ao menos tivesse vindo de calça... Detestou o vestido instantaneamente.
No caminho de volta pegou água e chá. Quase despejou a bolsa sobre a mesa atrás de um comprimido pra dor, achou um que devia estar vencido, mas não se importou. Já sentia uma pontadinha leve no pé da barriga. Abriu a agenda para começar o dia, esse dia que começara umas 3 horas atrás com um banho apressado, um copo de leite frio e uma fatia de bolo comum.
Perto da hora do almoço verificou as mensagens no celular. A secretária do médico dizendo que os exames estavam ok. A moça da joalheria avisando que o relógio estava pronto, pulseira e bateria trocadas. O tio Júlio falando do almoço de aniversário da tia Tânia no sábado. A faxineira avisando que não tinha ido porque teve consulta no postinho e não podia perder, estava esperando há mais de 3 meses. Um contratempo, de fato.
Aproveitou o almoço para resolver umas coisas na rua, passou na lotérica, pegou o relógio e chupou um picolé enquanto caminhava para o centro comercial ali perto, compraria o presente da tia e quase tudo resolvido. A galeria estava mais abafada que a rua. Os barulhos de pratos e talheres extrapolavam a praça de alimentação, havia uma certa desordem, demorou um instante para se ambientar. Localizou a loja de lingerie, compraria uma camisola pra tia, um novo sutiã, uma calcinha talvez.
A moça atrás do balcão atendia uma senhora alta e magra. A outra não parou de dobrar e guardar peças. Esperou. Precisava passar na farmácia. A senhora não se decidia entre uma camisola verde de algodão e um pijama de poá, pediu para experimentar de novo, meu Deus, era a terceira vez! Sentiu-se idiota por estar ali parada, esperando. Sentiu-se invisível, sentiu raiva e vontade de chorar. Saiu da loja. Sem presente, sem dignidade, com a calcinha enfiando na bunda e o maldito sutiã incomodando. Esqueceu da farmácia.
Chegou em cima da hora da reunião, não tinha escolha, encarou o elevador estufa, verdadeira sauna. O bafo quente quando a porta abriu quase a fez desistir. Como limpariam a mancha no vidro? A insidiosa realidade das coisas, agora, era aquele elevador. Concentrou-se o quanto pode no tapete do chão, pra que um tapete no elevador? A falta de praticidade disso era berrante. Que alívio quando a porta abriu e o ar gelado do ar-condicionado lhe deu as boas-vindas!
Enquanto caminhava para o banheiro pensou na faxineira. Colocaria a roupa de cama na máquina quando chegasse e estenderia pela manhã. Quando puxou o sutiã a alça desencaixou, tirou a parte de cima do vestido pra arrumar. De repente estava nua no banheiro do escritório, sentiu vontade de tomar uma ducha, deixar a água correr forte nas costas, lavar o cabelo. A reunião! Correu. Foi a penúltima a entrar.
No fim do expediente, exausta, com cólica, o absorvente vazado, sujando um pouco a calcinha, e a merda do sutiã pinicando, nada parecia mais atraente que seu banheiro, àquela altura sujo porque a faxineira não foi. Entretanto deu uma última passada no do escritório mesmo, queria lavar o rosto. Enquanto pressionava a torneira, inclinou-se sobre a pia, a alça do sutiã soltou de uma vez, arranhando de leve suas costas. Puta que pariu! Tirou o vestido ali mesmo, soltou o maldito sutiã e o jogou no vaso sanitário, deu descarga até ver descer, com um ódio libertador. Sentou-se encostada na parede, exaurida. Sentiu-se vingada da insidiosa realidade das coisas. Que sensação pouco convencional maravilhosa!
Vamos de texto?
ResponderExcluirTia, lendo e vivendo mentalmente a coisa toda. Os pequenos-imensos detalhes da vida cotidiana.
ResponderExcluirMenina, vivi a coisa toda também...muito real
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