Abrigo
Chegou bem perto para ver os detalhes. Minúcias intrigantes. Tudo bem entrelaçadinho, de modo que o vento não passava, de jeito que a chuva não entrava. Todo esse esmero era nato? Já nasciam sabendo, ou davam umas erradas nos primeiros? Enquanto olhava pensava nisso e se abismava.
Aquele ninho, apoiado na improbabilidade, foi o achado do dia. Até tinha visto uns passarinhos carregando pequenos galhos, enquanto coava o café, por várias manhãs. Mas viu por ver, sem esgarçar o pensamento nisso. Sem saber da origem e do fim daquilo. Cada qual com suas atribulações matinais, cada ser com sua disposição matutina (ou a ausência dela).
Conteve a curiosidade de procurar por ovos. Bastava aquele abrigo, no galho perto da porta.
Subitamente, desejou ter ninho, não casa. Ser passarinho...
Pensou no primeiro voo. Chegar o bico pra fora, soltar as garras frágeis da beirada e abrir as asas no vazio do azul, devia ser a coisa mais assustadora do mundo! Coordenação e força, medo e confiança. Concluiu que era por isso que gente não tinha asa, gente pensa demais. Passarinho não. Quando chega na borda é que o voo está pronto, foi gestado consigo, tudo muito natural. Gente não. Gente é um bicho sem categoria de tal, sem habilidade nata nenhuma, tudo deve ser aprendido, treinado, praticado. Lembrou de João Cabral “Para os bichos e rios nascer já é caminhar”, e pra gente? Nascer é...
Antes de completar a sentença e se deixar levar por um tanto de inferências, quebradas do pensamento linear, o telefone tocou, acabando com o devaneio todo. Não sentiu irritação, foi só uma surpresa mesmo, o timbre conhecido no silêncio de tudo. Não, não conhecia a pessoa. Não, nunca ouviu falar. Não. Não. Agora sentia um pouco mais que irritação. Uma impaciência com a insistência vazia e infundada. Respirou fundo tentando recuperar a tranquilidade de antes. Um ninho!
Sentiu uma vontade imensa de tocar no ninho, sentir sua textura, suas ranhuras. Conteve-se. Colocou o tamborete de madeira sob a sombra falível da primavera, queria acomodar-se para observar mais um pouco. Então, observou outras coisas, outros movimentos no entorno. A vida miúda que abundava ali, tão ao alcance das mãos.
Gente era uma coisa engraçada. Gente era uma coisa cheia de reentrâncias.
Olhou para a casa de fora pra dentro, a luz entrava pela janela, insuficiente, parecia. Tanta coisa acumulada ali, tanta coisa para a poeira assentar, tanta coisa estorvando tudo. Se vivesse num ninho o que teria? Nada. Nem espaço para esticar as pernas! Seria por isso que os passarinhos logo saíam em voo? Atrás de espaço? Essa visão romantizada fazia todo sentido quando pensava que eles saíam para um espaço infinito. Por um momento quis o espaço infinito também, seu desejo, no entanto, era só um esboço. Não queria o suficiente.
Chegou pertinho do ninho e o achou pequeno, claustrofóbico, até. Cada qual com seu estímulo único para sair, ponderou. Com a testa apoiada no vidro sujo da janela, olhou para o silêncio povoado que ocupava tudo. Abrigo. Todo bicho ajeita um: ninho, toca, casa, loca. Mas gente é uma coisa tão estranha que ajeita no peito abrigo e abriga no peito o caos e o infinito.
Pra fechar o dia, texto!
ResponderExcluire que fechada...apaixonei
ResponderExcluirQue lindo,tia. Uma delícia tomar um banho gostoso e abrir o tempo de fazer tudo pra não fazer nada com tuas palavras.
ResponderExcluirQue texto lindo, fui passarinhando com ele. S2
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