As pedrinhas
Tirou a botina, a meia fazendo um bolo, deixou na pedra chata e começou a descer com cuidado.
Não tinha mistério, era só pisar no marcado.
Chegou na beirinha do córrego, fez duas dobras na calça e enfiou os pés na água. Adorava aquela sensação das pedrinhas sob a sola áspera. A água gelada correndo mansa era um refrigério, sentiu um arrepio imediato, deu uns dois passos antes de molhar as mãos e passar no rosto, cabelos, nuca. Ia ali desde menino, os outros preferiam o pocinho, mais embaixo, onde dava pra tomar banho e não era quase fundo. Mas ele não. Sempre gostou desse pedaço, meio de esgueio, raso, cheio de pedras. A água limpinha resvalando em tudo, achando jeito, fazia música, dava sossego no peito. Olhava as pequenas locas, o fundo âmbar parecia sujeira, não era. Sentou num canto seco, ainda com os pés na água, o sombreado fazia fresco, era bom.
Era bom estar ali, era bom sentir o peito sossegado, o fresco da vida. Era menino outra vez. Era menino na cozinha de casa, rapando o tacho de goiabada. Era menino montando na mula madrinha, velha e cansada, no pasto atrás do quintal. Era menino sob as cobertas, de olhos apertados, com medo de assombração. Respirou devagar sentindo o úmido da brisa.
Amanhã cedo falaria com Djalma, se ele achava que a cerca estava errada era coisa de arrumar. Sabia que não estava, mas desde que voltara Djalma andava arisco, inquieto, parecia que não queria estar ali. Sempre foram vizinhos, a cerca não tinha pernas, oras! Percebeu que aquele pensamento o deixou triste. Não queria. Ele que chegasse a cerca os tais 180m pro lado, o diacho era a nascente, ele sabia. Soubera desde o começo, tinha entendido tudo. Djalma queria vender, o comprador queria água, a nascente era do seu lado da cerca, o vizinho deu na mala e achou jeito de confusão. Foi embora, voltou sem vontade. Tantos anos... Estava cansado demais dessa confusão besta, essa esperteza desonesta.
O pai sempre dissera que o acertado é bem pago. Estava cansado. Mexeu o pé pra sentir o liso das pedrinhas do fundo, depois com um pouco de força. A água molhou um pedaço da calça, só uma pontinha, não fez caso. Fez concha com a mão para beber um gole. Sentia uma sede que lhe salgava a boca, pregava. Deixou correr um pouco de choro. Era menino outra vez. O pai ensinando a medir légua pelos cascos do cavalo. Era menino, anjo de procissão de maio. Era menino fazendo carrinho no pedal da Singer da tia Eunice. Respirou apertado sentindo uma ponta de saudade.
Andou até a beirinha pra começar a subir. Deixou os pés secarem um pouco no sol antes de se calçar. Luzia estava pilando a paçoca quando saiu, sentiu fome. Deu vontade de um café docinho com uma fatia grossa de queijo pra acompanhar. Deu vontade de não falar nada com Djalma. Deu vontade de xingar.
O sol estalava mais brando. Lembrou de d. Jônia benzedeira, que sempre existiu velha no lugar, “trovão pro lado do Boqueirão é chuva certa, sai da água e acha seu chão”. Benzia até pra afugentar cobra, vinha gente de longe buscar d. Jônia pra benzer das cobras, é difícil achar benzedor de cobra. A velha era danada, fazia garrafada pra mulher parida, benzia menino, bicheira, verruga, quebranto, mau-olhado, dor nos quartos, de um tudo d. Jônia resolvia. Um dia sumiu, parecia encantamento. Procuraram que não foi vida. Até em buraco e oco de árvore, nada. O tempo foi passando e nada. O povo foi deixando. Dizem que virou assombração, pode até ser. Respirou pesado. Sentiu a subidinha. Não era mais menino.
Não ia falar nada com Djalma. O Djalma, aliás, que fosse tomar no cu. Espreguiçou e ouviu um piado longe, seriema. Lembrou do dia que se pegou com Luzia no pasto, recém-casados. Já não era menino, não era homem, não era nada além de um desejo e um tanto de sede. Respirou aliviado.
Acabei de re-assistir o menino e o mundo. Essa infância em nós que volta e nos dá a mão (às vezes, talvez aperte sem aconchegar, não sei). Teu texto deixou o gosto de vida matuta na minha boca.
ResponderExcluirperceber-se não ser mais menina...às vezes sinto isso com algo de tristeza no peito
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