Declaração de independência

 

Tinha 30. Desde os 28, já tinha pendurado o diploma de doutorado na parede. Era um quadro que a lembrava da vida que ela tinha vivido pelo sonho dos outros. Não que os intensos anos de estudo não lhe parecessem importantes. De algum modo, foi dentro da universidade que começou a repensar o sentido das coisas, notar que, o que todos acreditavam ser correto e lógico, era somente uma fina capa cobrindo um corpo enorme de erros e irracionalidades. Entendia que trilhar o caminho que o seu pai havia desenhado milimetricamente para ela, com o aval submisso de sua mãe e toda uma sociedade, foi o que garantiu sua rebelião silenciosa e irônica.

O pai, desembargador e dono de vários imóveis, não deixou nenhuma dúvida do que ela e o irmão precisavam fazer. Aos 11 ela disse, como fazem as crianças, que quando crescesse seria atriz. O pai balançou a cabeça e disse que não, que ela seria juíza ou, no mínimo, advogada. Um dia, ela e o irmão teriam uma cadeira de desembargador como ele. Aos 13, compreendeu que aquilo não era uma sugestão, mas uma imposição. Havia se interessado por um curso de artes plásticas que vira propaganda na internet e, ao invés de conseguir o dinheiro para matrícula, teve que ouvir o sermão do pai de que ele não teria filha perdendo tempo com essas inutilidades. Se ela gostava de artes, ele chegou a dizer, poderia comprar uma escultura ou sei lá o quê para que ela colocasse no quarto. A arte, explicou, é algo bonito e inútil que vagabundos desajustados produzem para que pessoas como nós possam usufruir (caso se interessem por esse tipo de coisa). Com o irmão a história se repetiu mudando apenas detalhes insignificantes. Durante 2 anos, pelo menos, ela e o irmão mais novo partilharam suas revoltas e xingaram o autoritarismo dos pais.

Seguiram a rota planejada. Ela entrou em uma prestigiosa instituição superior, fez mestrado na Alemanha e emendou em um doutorado em Harvard. Era fluente em 4 línguas, lia razoavelmente em latim, tinha contatos diretos e convites para trabalhar com alguns dos maiores nomes do direito internacional. O irmão, por sua vez, terminou a graduação em um curso de Direito menos famoso e começou a advogar enquanto sua vaga para juiz era gestada em alguma transação escusa. Aos 24 assumirá uma comarca no interior e, hoje, aos 27, numa óbvia burla do sistema de ascensão funcional, já era juiz na capital.

Pouco antes de morrer de um câncer que lhe comeu e torturou por 3 anos, o pai, sentindo que tudo estava em seu devido lugar  e com a intenção de evitar dor de cabeça para todos, fez os trâmites para dividir seu espólio em vida. Margarida ficou com o apartamento no condomínio de luxo em um dos bairros mais caros da cidade, além de herdar uma casa em que a família havia morado quando o pai ainda não havia atingido o auge da carreira, o sítio e a casa de praia. O irmão e a mãe também receberam 3 ou 4 imóveis cada. O dinheiro vivo na conta ficou para a mãe. Até porque ela e Marcelo já tinham suas poupanças e investimentos que o pai generosamente abasteceu desde que nasceram.

2 meses depois da morte do pai, Margarida declarou sua independência. Sabia que não era possível rasgar a pele fina da irracionalidade do mundo, mas que poderia, pelo menos, experimentar outras posições nele. Para desgosto da mãe e contra os apelos irados do irmão – que havia se tornado uma versão jovem de seu pai – ela se mudou do apartamento de luxo e colocou-o para alugar. Só com o aluguel era possível custear a vida que ela desejava e ainda guardar uns trocados no banco. Com uma parte do dinheiro da venda da residência dos tempos do pai recém juiz, comprou uma casa de dois quartos em uma vila dessas antigas que se encontram, quase por milagre, perdidas em meio aos grandes prédios e comércios em um bairro de classe média. Tomou todas as providências de segurança, enfeitou a casa com móveis coloridos e vasos de flores, no pequeno quintal, ao lado da mangueira frondosa, colocou uma armação portátil para rede, uma pequena mesa redonda e uma namoradeira de madeira clara.

No terceiro mês depois do passamento paterno, pediu demissão da faculdade particular em que dava aula. A família cogitou que isso tudo era um sintoma de depressão pela morte do patriarca e, com essa desculpa, tentou bloquear seus bens. A incompetência jurídica do irmão, contudo, não permitiu o processo de ir muito longe. Tudo que a mãe e o irmão conseguiram foi rachar o delicado vidro de amor por eles que ela tanto cuidava para não quebrar.

Depois de outros 3 meses vivendo a nova vida – a outra havia sido vida? – teve uma ideia mirabolante. Gostava do silêncio, de ouvir as próprias imaginações, mas sentia falta de um certo contato com os outros. Seus “amigos” de antes não resistiram a sua ousadia de viver o que desejava. Eles achavam que ela era aquela do rosto bem maquiado, do tailleur de marca e do sapato de salto alto. Era tudo que ela odiava. Ela preferia alardear os traços do tempo em sua cara, a roupa levemente puída e tocar o chão com os pés descalços. Começou um curso introdutório de história da arte e, ainda que gostasse muito do que aprendia, das discussões e das pessoas, seguia sentindo um vazio. Mesmo depois de começar a namorar com José e de criar laços de amizade com as pessoas de seu entorno, faltava algo. Percebeu que limpar sua casa era uma atividade prazerosa. Na faxina, o silêncio se mesclava com o suor, lembrando-a de que tinha um corpo. Era um momento de catalisar os conceitos que ia lendo nos livros, de voar brincando com as memórias de um futuro que não iria chegar nunca. E, claro, havia aquela sensação final, um micro orgasmo de perceber a imundície temporariamente liquidada. A faxina era, para Margarida, como uma criação artística. Dar forma inédita a um conteúdo usual. Poeira jogada sob a luz e depois engolida por um aspirador ou uma lixeira. Até o dia seguinte, onde uma tela em branco – no caso um chão sujo, um ladrilho com limo – se apresentava disponível para a artista. Enfim, a ideia mirabolante: seria diarista.

Colocou o anúncio no jornal, afinal, ninguém que a conhecia poderia contratá-la. Ela não faria um ‘favor’ de limpar a casa dos amigos e, tampouco, queria ter que passar pelo desconforto de ter que justificar ou dar a entender suas escolhas a quem quer que fosse. Recebeu algumas ligações, inventou que já tinha compromisso nas segundas, quintas e sextas e que não trabalhava nos finais de semana. Experimentou umas 10 ou 11 casas antes de fixar-se em 2 apartamentos de casais de classe média baixa. Nas outras 8 ou 9, não suportou a semelhança com a casa em que fora criada. Em uma delas, não resistindo ao nível de babaquice dos patrões que a tomavam por uma encarnação do nada, riu enquanto eles sofriam diante de uma pergunta do filho de 10 anos sobre a tarefa de inglês. Eles, com ódio no olhar e certos de que iriam humilhá-la, perguntaram se ela poderia fazer melhor. Ela não só fez, como ainda aproveitou para dizer que se fosse eles, não entraria com a tal da ação que pensavam contra o sócio. O choque dos esnobes foi tão grande que sequer tiveram reação. Só de pirraça, ela depois enviou para eles pelo correio seu diploma de doutorado. Conhecia bem gente assim e sabia que arranjariam uma história qualquer para dar sentido ao ocorrido. Por isso mesmo, riu sozinha imaginando como o fato dela ser doutora em direito Harvard iria ser encaixado na curta imaginação deles.

Há 1 ano, Margarida segue limpando os dois apartamentos que escolheu. Nenhum dos casais contratantes desconfia que empregam a 120 reais por dia uma doutora que ainda publica em revistas especializadas internacionais e que, pelo menos duas vezes por ano, dá palestras em universidades fora do país. Nas poucas horas em que cruza com eles no início da manhã, trocam as palavras amenas que a cordialidade manda e, eventualmente, quando partilha com algum deles um pão com café, comentam banalidades.

A Margarida diarista resgatou o sentido da Dra. Jurista. Aos 30, a menina de 11 realiza-se como atriz.

Comentários

  1. Meninas,pari hoje esse conto que vinham sendo gestado há semanas.

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  2. Espetacular...seria tão bom se os jovens escravizados pelos sonhos de seus pais tivessem a oportunidade de se recriarem
    Denise

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  3. Viver a vida q se quer... Qto antes isso acontecer, mais se vive. Sobreviver é mto pouco.

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