Maria

 

Maria ninguém havia se acostumado a reclamar de tudo. Tudinho lhe doía. Até os cabelos. Sua infância era uma mazela só. Aos sete foi mandada para uma casa, trabalhar como doméstica. Tinha de limpar uma enorme casa com crianças (por que sua infância não existia) enquanto lavava, passava, cuidava dos banheiros, as outras crianças brincavam, estudavam, e corriam no jardim nas manhãs de sol de domingo, enquanto ela repetia sua rotina de lavar, passar, limpar...de domingo a domingo, por que sua folga era a cada 15 dias e sua mãe não ía busca-la, só no fim do mês era que a via, no momento em que a mesma recolhia seu dinheiro por que estava precisando para pagar por comida dos irmãos menores. Lá ficava ela na casa rica que não era sua, na vida que não era sua, mas que lhe dominava toda. Cresceu sem o direito de sorrir. Viveu os terrores da infância roubada pelo trabalho e pelos pedidos abusivos de patrões. Sua colega de quarto, uma adolescente a trancou num baú uma noite inteira por que ela não quis deixar que a jovem pegasse em suas partes íntimas. No dia seguinte contou para a patroa que chamou a atenção da moça que a surrou. Passaram-se anos assim...medo, solidão, desamor, e exploração de seu corpo, sua tão pouca força física. Com o tempo era uma moça prendada de mão cheia. Cozinhava bem, dizem por aí que isso é ser empreendedora. Passou a ser a cozinheira, subiu de patamar na casa dos patrões. Sua vida mudou em quê? Há muito o que se aprender sobre a diferença entre ser empreendedor e ser sobrevivente. Esta era uma típica nordestina sobrevivente. Era amada por todos da casa. Agora também podia cuidar das crianças por que era uma excelente babá. Como aprendera a cuidar de crianças se foi uma criança tão desamada, desassistida, desgraçada e largada em sua pobreza infante? Somos quem podemos ser, e ela só poderia ser boa para aqueles estranhos que lhe davam roupas e materiais de higiene pessoal, já que mesmo depois de dez anos sua mãe continuava indo buscar seu salário. A patroa por um ato de auto preservação incluiu (e não lhe custou muito) em suas compras, vestidos de chita, leite de rosas, sabonete de lavanda para aquela que carregava seus filhos no colo e cuidava de seus resguardos. Era importante que estivesse limpinha. Aos domingos ía para missa ouvir falar na salvação de sua alma se se comportasse bem. Acreditava que precisava estar virgem para casar e que seria feliz para sempre quando isso acontecesse. Tal qual sua patroa era (aos seus olhos). As revistas que a patroa lhe emprestava, contavam histórias de mulheres sempre salvas por seus homens maravilhosos que atravessavam mares, céus e terras para conquistá-las, lia com dificuldade, mas as crianças agora crescidinhas a ajudavam. Sr. Maurício o patriarca da família era amoroso com os filhos, com D. Marta e nunca entrou no seu quarto para abusar dela. Ela o via como um dos príncipes. Ela também teria o seu. Mal sabia ela que a pobreza material tem muito a oferecer à pobreza emocional e que rapazes como o Sr. Maurício, via de regra, não se apaixonam por Marias Ninguém. Sua esperança da juventude foi colhida por um grande caminhão chamado embriaguez e desordem. Casou-se com o segundo homem por quem se apaixonou. O primeiro era preto. Pobres aprendem a fugir daquilo que pode piorar suas vidas. Então o segundo era pardo e por alguma razão até hoje desconhecida lhe convenceu de que teriam seu THE END bem feliz. Ah que estupendo engano! Seus dias de paz tinham se encerrado naquele SIM. Alcoólatra e misógino – um péssimo companheiro. De tudo que não prestava fazia com ela. Certa vez precisou tirar sobrancelhas, raspar o cabelo da cabeça e das partes íntimas por que estava com uma doença que a vizinha lhe explicou vir das “raparigas e o nome é chato” e aquilo estava por todo seu corpo. Acostumada que era a dor, continuou ao lado do verme e ainda teve duas filhas com ele. Uma delas morreu. Livrou-se do mal de viver uma vida de desgraça como estavam destinadas sua mãe e sua irmã mais velha. Maria ninguém só reclamava. Sempre com pena de si mesma. De uma comiseração só. Quando era elogiada por uma vizinha, dizia: “não sou nada disso, sou feia e não presto”. Ensinava para a filha o quanto eram feias e imprestáveis. Desamor era sua marca. Seguia ao lado do verme. Parecia se punir por algo. O que havia feito para não merecer os príncipes das revistas? Por que só existia um Maurício na vida? Por que ela não tinha direito ao seu bom companheiro? Não entendia como a vida funcionava. Havia aprendido a sobreviver. Só entendia disso. O estrupício que estava ao seu lado controlava cada caroço de arroz comido, e gota de querosene que era posta na lamparina. Maria Ninguém fazia de tudo para que ela e a filha não morressem de fome: montava flores de plásticos, lavava roupas de mulheres ricas, bordava, pintava toalhinhas, era convidada para festas para cozinhar, e o fazia para ganhar um prato de comida e levar um para casa. Não sabia sequer cobrar pelo trabalho. Quando a chamavam e perguntavam quanto custava seu trabalho, respondia: “me dê qualquer coisa”. Foi assim a vida toda. Nunca soube o valor de seu trabalho já que sua mãe lhe usurpava o dinheiro todo. Não atrelou trabalho a dinheiro. Ao trabalhar entendia que as pessoas lhe dariam coisas por que elas eram boas. Não entendia o valor do trabalho. Karl Marx ficaria surpreso em saber que existe um modo ainda pior de exploração e alienação. Então de casa em casa, de lavagem em lavagem, de festa em festa passava por aí trabalhando e “ganhando” comida, roupa, e um pouco de afeto das pessoas que a tinham “como se fosse da família”. Aproveitava esses momentos para se lamentar e mostrar como sua vida era ruim, era difícil. Maria ninguém não sabia que só ela poderia mudar tudo aquilo. Um dia depois de uma festa, na qual cozinhou para centenas, chegou em casa exausta. Sua filha, então com sete anos perguntou: “por que eu preciso ter um pai?” Maria não soube responder. Disse: amanhã respondo. Vá dormir. Dormiram. Por volta das três da manhã, como de costume o embuste bêbado chegou. Dois murros na porta e ela já estava lá de prontidão para abri-la para seu algoz. Entrou com outros três companheiros tão alcoolizados quanto. Os três estranhos sentaram e aguardaram a cozinheira terminar o jantar exigido pelo “dono da casa”. Sinhozinho tinha mandando e sua função era cumprir. Cozinhou, serviu e viu que um dos estranhos olhava para a cama de sua filha que dormia o sono da infância que lhe fora roubado pela adolescente no passado. Lembrou das noites em que ela mesma ía para dentro do baú com medo da jovem lhe atacar. Passou a se trancar no baú...para se proteger. Por muito tempo (não lembra quanto) dormia encolhida nesse baú que D. Marta colocou no ‘quarto do despejo’ para evitar que a outra a trancasse, mas o baú se tornou seu amigo. É companheira! Quando a cruz pesar, se agarre a ela. Um dia sr. Maurício a chamou e não a encontrou por que ela dormia sossegada no baú. Quando lhe questionaram sobre onde estava, respondeu que dormia no baú com medo da colega de quarto. A essa altura já tinha se provado tão competente que demitiram a outra e ela assumiu TODAS as funções domésticas da casa. Na época, nem pensou que merecia um aumento de salário (não sabia o que era isso), só pensou na paz que teria dali em diante e que poderia dormir na cama e esticar as pernas. Despediu-se do baú. Essa lembrança na noite em que servia aos bêbados e via um deles cobiçando sua filha, e a pergunta da ninguenzinha a fizeram pensar que precisava fazer alguma coisa. Foi a melhor das cozinheiras naquela ocasião. Serviu aos três como se merecessem o melhor que ela pudesse dar. Sentiu que podia ser falsa. Quando os estranhos foram embora incorporou d. Marta e disse: “voltem sempre, será uma honra recebe-los”. O estrupício com quem se casou a olhou e disse: “é isso mesmo, tem de se comportar”. Ela que estava tomada por algo que não entendia bem, sorriu e disse: “Você está certo”. Pouco tempo depois ele dormia e roncava como é típico dos porcos. Calma e silenciosamente ela tomou a filha nos braços que sequer abriu os olhos, apenas a abraçou no pescoço e enroscou-se em seus cabelos como se soubesse que sua pergunta havia mexido com sua mãe e que estava prestes a acontecer uma grande mudança em suas vidas. Colocou uma manta sobre o corpo da filha, na leveza de uma gata pegou a lamparina e delicadamente a derrubou dentro da rede onde estava o marido. Saiu da casa devagar, trancou a por fora e sequer olhou para trás para ver o clarão que subia pelo telhado. Caminhou até o dia amanhecer. Não sentiu cansaço. Não sentiu medo. Não sentiu remorso. Era seu primeiro dia como Maria Silva, a viúva, e ela só sentia isso por que este sentimento seria o único do qual ela não iria reclamar.

Comentários

  1. Fica a dica para as marias de todo dia...rsrs

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  2. Eu fui lendo e lembrando de uma senhora Maria.... mas esse final é tão Denise 😂

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    1. Um misto de verdade e fantasia

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    2. Meu respeito por essas Marias q tacam fogo mesmo (em todos os sentidos...)

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  3. Depois de minha alma ser tocada por esse texto, só desejo que as marias ninguém que habitam em mim e em nós, mulheres, sejam transmutadas com a luz do fogo.

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