Ouro de tolo
Entrou em casa arrasado. A bermuda suja denunciava a queda de bunda no barro. Sentia um misto de raiva e vergonha, apertava bem a boca, segurando pra não chorar. Passou de cabeça baixa pro banheiro. Ainda não estava escuro, mas não iria mais lá fora, de modo que o banho lhe pareceu atraente.
Abriu o chuveiro e ouviu “passou direto pro banho? Sem ninguém mandar? Aí tem...”. Entrou de uma vez, nem viu se a água estava boa, a ducha fria fez seu corpo tremer. Aos poucos foi esquentando e ele relaxou. Começou a chorar. Primeiro de raiva, depois de vergonha e então de um tipo diferente de dor, a dor da traição. Ficou no chuveiro até virem bater na porta, “vai acabar a água da caixa, menino!”. Fechou o chuveiro, mas ficou enrolado na toalha um pouco antes de sair do banheiro. Queria por o pijama e não sair mais do quarto, não podia. Se não estivesse à mesa para jantar o pai mandava ver se estava doente e era melhor estar. Não estava. Colocou a roupa e pegou o gibi do Zorro. Ficou imaginando como seu herói se vingaria daquele idiota até a hora de comer.
Já à mesa, comeu rápido e quieto, a verdade é que não tinha muita fome. Estava entalado com os acontecimentos da tarde. O pai falava alguma coisa sobre o caso do dentista, a mãe concordava. Não quis sobremesa, quem já viu graça em doce de mamão?! Quando foi deitar ouviu dizerem “esse menino aprontou alguma hoje...”. Sentiu as bochechas vermelhas de raiva e vergonha. O irmão entrou no quarto penteando o cabelo com o pente de bolso, só porque lhe apareceu uns fiapos de bigode se achava homem, um besta daquele, tinha medo de barata e se mijava com história de fantasma. Fingiu que dormia, não adiantou. “O que aconteceu hoje?” Ficou calado. “Fala de uma vez, ou conto pro pai que você foi pro casebre da linha do trem com os moleques.” Chantagista de merda!
Pensou em contar como o idiota zombara dele. Ontem, enquanto andavam no mato, perto do terreno baldio do fim da rua, acharam uma coisa muito esquisita, um esqueleto de lagartixa ou coisa assim, bem formadinho, nunca tinham visto. Ficaram empolgados, podiam cobrar 50 centavos de cada moleque pra mostrar, toda vez que algum descobria alguma coisa era esse o peço pra compartilhar, fizeram as contas de quanto daria pra cada um e ele já pensava no gibi novinho do Zorro, ou nos picolés na saída da escola. Depois decidiria. Combinaram o esconderijo do esqueleto e foram embora. Na hora marcada a molecada toda reunida, estava excitado com a algazarra, o idiota recebeu de todos e na hora de mostrar o esqueleto, ele não estava lá. Olhou para o idiota e ele falou “agora”. Então, dois dos meninos o seguraram pelos braços, outros dois pela perna e o sentaram no formigueiro onde um outro moleque havia jogado água. Debateu-se tentando agarrar os moleques, deu com a cabeça na boca de um, sangrou. Ele largou e começou a correr, todos correram. Levantou ligeiro, tirou a bermuda pra sacudir as formigas, uma ou outra picada, nada demais. Só a raiva e a vergonha. O idiota era seu amigo.
“Vai falar ou não”. Não. Continuou em silêncio, fingindo mal fingido que dormia. “Pois amanhã conto pro pai, assim que ele vier almoçar, se prepara.” De repente sentiu uma coragem danada tomar conta dele, “conta, seu bosta! Chantagem é ouro de tolo, tenho medo, não.” Agora ele tinha coragem e o besta nada, começou a vingança. O próximo passo era meter a mão na cara do idiota depois da aula, um soco bem dado no nariz, pra sangrar muito. Já que ia apanhar de qualquer jeito, pelo menos que sentisse o gosto bom da vingança concretizada.
Foi dormir leve, cheio de uma liberdade nova. A coragem tinha que durar até a hora do almoço, pelo menos.
Último do dia, prometo... rsrs
ResponderExcluirOs ódios cotidianos que nos engasgam tanto. Feliz que o 'menino' foi invadido de coragem para vingança. Torço que ela dure até o almoço!
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