Números e palavras
Números e palavras
678 chegou ao 1º andar e não sabia como chegar na rua 9900. Perguntou
ao porteiro número 23 como fazia para chegar à rua solicitada. Sr. 23 explicou
que bastava que 678 dobrasse na rua 2 à esquerda e ao entrar na rua 19 veria o
bar de número 13, bem em frente a ele estaria o beco número 14. Lá chegando
ele poderia perguntar novamente por que estaria mais perto da 9900. Seguindo os
números, 678 chegou ao beco. Mais que estranho! Algo tinha acontecido de muito
errado. O beco era marcado com palavras. Voltou a olhar o número e viu que na
verdade era o desenho de um pescador magrinho segurando a vela do barquinho,
isso não era o número 14.
Como ele seguiria
agora? Olhou para o pipoqueiro e não soube como o chamar. Gaguejou e o cheiro
da pipoca o deixou perceber o sentimento de número Zero, a fome, e o
senhorzinho lhe entregando um saquinho de pipoca disse:
- Posso ajudar, moço?
678 que não lembrara de ter sido chamado por outra coisa que não um
número, respondeu: - fala comigo, sr....? qual seu número?
O pipoqueiro riu e disse: ahhhh você não é daqui não né? - Acho
que entrou no beco das palavras procurando o beco que leva à uma rua aí sei lá
que número...
678 não conseguia entender como pessoas poderiam viver sem os
números. Intrigado, insistiu com o pipoqueiro sobre qual seu nome e estendendo
o dinheiro para pagar a pipoca disse:
- Sou 678 e o senhor? Tire aqui a pipoca por favor.
- Sou Heráclito, não entendo de números, guarde seu papel. Aqui
ele não tem valor.
- Como vivem? Como vão se sustentar? Seu meio de vida
precisa de um retorno. Disse 678 levando a mão cheia de pipoca para a boca.
- As pessoas do beco gostam de pipoca então plantam o milho
e me dão para que eu faça. Nosso beco sempre tem cheiro de pipoca. E de flor,
veja à frente, a florista, se você gostar, ela também lhe dará uma rosa. Do lado
oposto a ela você encontrará o padeiro que faz pão na hora e lhe entrega o quanto
você precisar, mas não vale estragar.
678 achou que estivesse vivendo um enorme pesadelo. As pessoas
não poderiam viver sem números. Não poderiam NÃO SER números. E indagou:
- Sim, mas como vocês se mantem?
- Dividimos tudo e não desperdiçamos.
- Como chegaram à uma comunidade desnumerada como essa? Como
contabilizam o que trabalham, o que ganham, o que comem, o que vestem? Como pagam
suas contas? Como tem noção do lucro? De onde isso saiu? 678 não podia suportar
algo que não fosse ancorado em suas perspectivas de vida.
Heráclito que parecia estar acostumado a responder àquelas
perguntas por ser o primeiro da ponta do beco, calmamente disse:
- Acredito, moço que as perguntas devam ser outras. Como é
possível uma pessoa usar 1/3 ou mais de suas 24 horas de vida para ganhar
números em formato de papel para comprar coisas que tem números mais que
valores para ficar vivo? Como é possível que uma vida preta possa ser mais
barata que a vida de um porco que servirá aos que tem mais números em forma de
papel moeda? Como é possível que 14 facadas sejam dadas em uma pessoa de 12
anos por ser um morador de rua? Como é possível que mais de 100 mil pessoas
morram durante uma pandemia por que a economia não pode parar? Como é possível que
33 homens estuprem uma mulher? Como é possível que dezenas e dezenas de golfinhos
morram numa caça para divertir pessoas ricas e entediadas?
Enquanto Heráclito falava, 678 tentava lembrar se algum dia
teve nome. Sentia-se tão envergonhado por acreditar que o mundo de números era
o modo certo de viver. Então, ainda ouvindo os números esquecidos pelos
numerólogos do seu mundo lembrou-se que um dia o chamaram Ronaldo. Quando deixei
de ser Ronaldo? Quando virei um número? Para onde tinham ido os valores das
palavras que agora Heráclito lhe jogava na cara: solidariedade, empatia, comunidade,
respeito, diversidade, partilha, festa, alegria, brincadeira...?
Desolado Ronaldo sentou-se na calçada e aceitou o suco do entregador
de suco. Sr. Sócrates. Que lhe perguntou: quem é você? Ronaldo ainda zonzo com
a descoberta de ser um número, mas confuso com o fato de que se sabia mais que códigos
numéricos disse: Acho que sou Ronaldo, mas francamente eu não sei.
Sócrates cercado de crianças disse: “venham todos e todas,
temos um novo morador do beco com saída”. Ele está começando o processo de auto
descoberta e vai precisar muito nomear, ele mesmo as coisas. Agora precisamos construir
junto com ele o mundo de palavras que lhe fora tirado.
Um tanto azedo...mas com esperança
ResponderExcluirMais esperança q azedume...
ResponderExcluirMuito legal, Dê. Também achei esperançoso. Azedo é não sabermos chegar ao beco.
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