O dia inaugural
A claridade entrando por baixo da cortina delatava o dia inaugural. Manhã recente invadindo o quarto, exigindo reação. Puxou o cobertor um pouco mais pra cima, aconchegou melhor a cabeça, cinco minutos. Ficaria ali mais cinco minutos. Tentou lembrar do que havia sonhado, devia ser bom, estava ligeiramente excitada, com preguiça, mas excitada. Desceu a mão até a vulva com intenção de se masturbar, olhou a hora, não dava tempo, mas masturbou-se assim mesmo, com pressa, gozo de hora marcada.
Escovou os dentes enquanto o chuveiro esquentava. Banho rápido. Estava acostumada à correria logo cedo, não gostava, mas não mudava. Poderia fazer uma lista das coisas que não gostava, mas não mudava. Seria extensa? Difícil saber sem relativizar, sem um comparativo. Talvez, além das coisas, fosse preciso um gradiente de intensidade para equalizar o verdadeiro peso delas e, assim, chegar próximo à dimensão que tinham em sua vida realmente.
Enquanto secava os pés, pensou que precisava cortar as unhas, mas não agora. O chão frio do banheiro a deixou arrepiada, esqueceu o chinelo de fora. Olhou-se no espelho, completamente nua, via-se da cintura pra cima, achou os peitos mais caídos, antes de achá-los belos. Aproximou-se do espelho, olhou em seus próprios olhos, viu-se. Pequenos vincos apareciam sobre a boca. O nariz mais pontudo pra baixo. Uma linha, ainda suave, desenhava-se na testa, acentuava-se conforme mexia os músculos da face. As marcas de expressão no canto dos olhos estavam mais fundas, pés de galinha, pés de aves de rapina, pés da idade, dos dias acumulados. Há dois dias vira o quão enrugado ficava o pescoço conforme o jeito que o inclinava, na ocasião, teve uma crise de choro. Passou. Passou?
Deteve-se nas olheiras, fundas e escurecidas. Só a maquiagem para ocultar sua existência. Só a tinta para mascarar os cabelos brancos. Só uma máquina do tempo para lhe devolver o viço. Sentiu-se muito mais velha do que realmente era, mais acabada do que nunca. Envelhecer. Ser uma mulher velha. Isso não estava nos planos. Não aceitava que aquela no espelho fosse ela. Próximas férias usaria a poupança para fazer plástica, tomava essa resolução todas as manhãs para desistir à noite, melhor terapia. Mas estava de manhã e ela ainda tinha todo o dia para desistir de qualquer resolução.
Um vento frio entrava pela janela aberta do quarto, arejava a vida assim. Antes de fechar ficou uns minutos de olhos fechados, com a cabeça pra fora. Os barulhos da cidade desperta chegavam sem cerimônia, uma obra por ali, buzinas, “amolador de facas e tesouras”. Com o vidro fechado, deixou-se ficar mais um pouquinho olhando pra fora. Partículas de poeira, suspensas na luz do sol, assentariam num móvel devagar, acumular-se-iam a espera da remoção, pacientes e insistentes. Permanências da vida a despeito de tudo. No fim, só o pó dos muitos acúmulos estaria sobre a terra. Sorriu lembrando do sonho recente.
Bora, começar a semana...
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ResponderExcluirTia, hoje mesmo comecei o dia reparando na poeira iluminado pelo facho de luz pela brecha da port/janela do meu quarto. Há dias penso sobre a poeira, a faxina e o que ela nos diz sobre a vida. A poeira nos ensina sobre o tempo e sobre as muitas inutilidades de nossa lida/luta com ele, não acha?!
ResponderExcluirA poeira é nosso atestado de finitude e incompetência diários, o tempo esfregando isso na nossa cara cotidianamente...
ExcluirMuito da vida cotidiana presente aí
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