Proibido morrer sem gozar
Abriu os olhos, eram cinco da
manhã. Fazia tempo que não precisava mais do despertador. Parecia que o tempo
estava dentro da sua cabeça latejando de uma forma espontânea, fora de seu
controle. Completamente programada levantava às 5h pontualmente todo dia. Já
não perdia um nascer do sol ou a chuvinha de cedo nos tempos de inverno.
Mecanicamente sentou-se no vaso e sentiu que desceria junto com o líquido
quente. Olhou-se no espelho e enquanto escovava os dentes observava seus peitos
caídos. Foram pratos de comida de três crianças que agora estavam longe e
“viviam felizes para sempre” cada qual num lugar diferente da cidade fazendo
algo que não era da sua conta, por que essas coisas ninguém conversa com mães.
Seu companheiro João, havia virado semente já fazia 15 anos. Sentia sua falta
por um lado, por outro nem tanto. Olhou-se novamente no espelho percebendo
flacidez até na alma. Como tinha-se deixado chegar naquele ponto? Parece que
aquele corpo não era seu. A pessoa que residia ali, naquele monte de pelanca
não era molenga assim. Será que não? Enquanto olhava as peles que se sobrepunham
umas sobre as outras lembrou-se do quanto deixou de dizer não para João ou para
os filhos e a filha. Pensou: “acho que a flacidez começa na alma da gente e
depois come a pele”. Seguiu sua rotina tentando sentir-se bela. Prendeu o
cabelo que já não pintava fazia tempo, passou um batom suave e notou sua boca
murcha. Inferno...não havia sobrado pedra sobre pedra. Seguiu para o escritório
no qual trabalhava como arquivista fazia 35 anos. Todos a queriam bem. E ainda
encafifada com suas “pelancas que vinham da alma” lembrou do quanto de não que
deixou dizer para o trabalho também. Sempre chegando na hora, não importava a
noite de sono ruim que tivesse tido, sempre se sobrecarregando para que alguém
pudesse curtir um fim de semana mais prolongado. O que havia sobrado de tudo
isso? O que ganhou com tudo isso? Olhou para o flanelógrafo e viu as inúmeras
fotos com os colegas de trabalho, tomando café, comemorando aniversário,
fazendo chá de fraldas...tinha havido parceria, mas por que ela não sentia que
havia sido uma troca justa? Seguiu seu dia, apesar das perguntas que lhe
infernizavam a paz, cumpriu com todo seu dever. Ao final do expediente, entrou
na sala do chefe e sem querer viu que ele olhava uma foto de uma jovem mulher
nua no computador. Disfarçou o constrangimento, deixou a pasta para ele assinar
a documentação e saiu. A imagem da moça não saía do seu pensamento. Passou numa
loja de produtos eróticos e apesar da expressão desconsertada da vendedora
comprou brinquedinhos para ela. Ao mesmo tempo se dizia: “não vou usar, quero
só ver como são”. Sua relação como João tinha sido árida. Ambos haviam
aprendido que sexo tinha por finalidade procriar e dar prazer ao homem. Queria
mudar aquilo nem que fosse com suas próprias mãos. Aproveitando a ousadia,
comprou também uma fantasia de Marilyn Monroe. Achava incrível como aquela
mulher se amava cantando uma musiquinha básica de Feliz Aniversário. Ela cantaria
Bésame Mucho e faria mais sucesso ainda. Marcou um encontro consigo mesma em
casa na cama de frente para o espelho.
Chegando em casa, tomou um
banho completo daqueles que a gente rejuvenesce uma década. Saiu com o roupão
vermelho que um dia comprou achando que chamaria atenção de João, e ele a
ignorou, tirou o bicho do armário e como tinha o hábito de lavá-lo estava no
ponto de usar. Sentou de frente para a TV, colocou uma música suave, deitou-se
no sofá e usou seu primeiro brinquedinho! O delírio de um orgasmo nunca sentido
antes a inspirou a cantar e dançar frente ao espelho. Então levantou-se e
enquanto ía se vestindo de Marilyn Monroe ía lembrando da carreira de bailarina
guardada no baú dos sonhos por que João jamais deixaria. Lembrou do sonho de fazer
faculdade de Letras por que amava literatura espanhola, mas nasceu seu primeiro
filho. Depois desistiu de fazer um curso de dança de salão por que o horário de
trabalho somado ao ofício de ser mãe somado ao de ser esposa somado ao de ser a
que cuida da casa não deixava tempo para nada que fosse em prol de seus sonhos.
Aprendeu a desistir deles. Aprendeu a viver um dia após o outro dizendo sim
para todos os deveres que lhe eram imputados. João se foi e os filhos também.
Deixaram o vazio de suas dependências. Não havia mais ninguém pedindo, passa
aqui minha roupa, viu meu chapéu? Onde estão minhas chaves? Quero chocolate
quente com sanduiche, cadê meu caderno? Preciso de um vestido novo para a
festa...prega aqui esse botão. Todas as demandas se foram, inclusive as dela
mesma tinham sido levadas...mas aquele orgasmo a acordou...E ela percebeu que
poderia viver agora que estava velha. Viver e velhice fazendo parte da mesma
frase lhe pareceu estranho. A velhice, entretanto apareceu como um lugar
confortável que pertencia totalmente a ela. Dançou na sala, subiu na cama,
dançou pelada...riu de suas carnes tão desprovidas de força, mas obedecendo à
força que vinha de sua essência há muito negada. Vestiu-se de Marilyn Monroe e
dançou com ela mesma uma valsa e depois cantou para si Bésame Mucho. Imaginou
que Elvis Presley dançava com ela e tentava seduzi-la durante a dança. Riu de
João imaginando o defunto corno por que com certeza iria gozar de novo com
Elvis no pensamento. Como havia imaginado era melhor do que a cantora
loura...seus cabelos grisalhos tinham um toque especial que revelava tempo
vivido e ela cantava muito melhor. Dançou, cantou, se acariciou e se deu todos
os abraços merecidos e todos os reconhecimentos negados. Ainda não saciada
agarrou-se com um papel e tomando de volta mais uma habilidade esquecida
desenhou-se...com peles, peitos murchos e bunda arreada com uma frase ao fundo
que dizia: Proibido morrer sem gozar. Essa seria a frase que pediria para
colocar no seu túmulo. Certamente sua prole não a obedeceria como sempre o fez
quando se tratava dos desejos dela, mas não tinha problema: Ela teria morrido
com direito ao gozo. Ela sabia que mesmo que achassem “mamãe está delirando,
caducando”, ela tinha se pertencido ainda que por um curto espaço de tempo, tão
curto que não havia espaço para arrependimento ou culpa, tão curto que sua
intensidade era eterna. Dormiu o sono das pessoas que passaram pela vida
cumprindo sua missão e acordou num lugar onde era primavera.
Texto em homenagem às mulheres velhas
ResponderExcluirDenise
Por mtas descobertas de gozo assim...
ResponderExcluirDê, pensei na aula de ontem, no seu livro (tese) e em quantas vezes a gente esquece de dizer 'sim' para gente....
ResponderExcluirSim. Ontem sonhei com uma delas...e rememorei muitas de suas sublimações
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