Quem é quem?
Sonhou
que havia morrido. Sua primeira preocupação depois de morta era: porra, a
galera vai sair para tomar café depois do velório e eu não poderei ir, até por
que o motivo do café terá sido minha morte. Era assim com as amigas, só
precisavam de uma desculpa para tomarem café juntas e falarem mal do governo,
dos colegas de trabalho perversos, dos maridos e dos/as filhos/as ingratos e
preguiçosos. Essa era a melhor parte da vida, e ela não estaria naquele café.
Lembrou-se que no último café riram muito de como estariam na velhice, pois
sabiam que seus defeitos envelhecidos ficaram ainda mais agravados e se
imaginaram muito, muito chatas...motivo de risada e piada para a semana toda.
Enquanto
lamentava ao lado do seu próprio corpo que não poderia estar no café do fim do
dia com as pareias viu o companheiro entrar no quarto e desolado sentar-se ao
seu lado. Percebeu que não estar no café seria o menor dos problemas. Teria de
ver a dor das pessoas que amava. Difícil tentar se comunicar com um mundo que
só entende a linguagem do palpável. Soprou forte e ainda que o vento que
conseguiu fazer entrar pela janela tivesse feito o marido olhar perdido para a
imensidão do céu, não foi suficiente para ele entender que ela estava bem.
Conversou com quem cuida da chuva pra ver se conseguia chamar a atenção das
filhas que desesperavam cada uma em seu quarto, mas uma delas fechou os ouvidos
dizendo: “até o céu está triste”. A outra tomou logo uma medicação pra não ver
a coisa toda passar. Gente que saco, isso! Havia viajado para fazer doutorado e
por quatro anos ficou fora e todos seguiram felizes e serelepes porque que
agora não poderiam entender que ela estava num outro lugar (sem saber bem qual)
mas estava viva de outro jeito? É que esse tal de viver não deixa a gente conversar,
estudar e dialogar sobre o morrer. Essa sangria desatada de estar vivo e em
busca da fonte da juventude faz com que as pessoas esqueçam a finitude das
coisas. Tocou a mão do companheiro tentado trazê-lo à razão quando o mesmo
disse: “não sei o que vou fazer da minha vida sem você”! Achou aquilo tão
absurdo. Conversaram tantas vezes sobre isso. Apoiaram-se na decisão de:
passado o luto retomaremos nossas vidas amorosas por que envelhecer sozinho
deve ser ruim demais. E agora esse cabra abestado fica nessa? Deve ser o
choque, vai passar. Vixe! Lembrou-se que não tinha pago algumas contas, morreu
devendo, mas o companheiro deveria se lembrar disso nos próximos dias. Faltaram
alguns relatórios para enviar para a chefia imediata, morreu antes de cumprir
com seu dever de funcionária que nunca deixava de mandar um relatório. Também
não havia visitado seus sogros, como havia prometido. O velho sogro era um
grande amigo e tinha se tornado quase um pai desde que o seu havia partido.
Será que vou encontrar papai? Não lembrava bem o rosto da mãe por que esta
tinha passado para o andar de cima quando tinha dois anos de idade, mas também
sentiu curiosidade em encontrá-la. Será que a amaria? A gente ama quem não
conhece? Perdida em seus pensamentos de morta surpreendeu-se quando o sogro e a
sogra chegaram e inutilmente tentou explicar por que não os visitou, mas
novamente foi ignorada em suas ventanias, chuvas e toques. A sogra caiu num
pranto de choro que ela não conseguiu entender e rápido pensou: escrota falsa.
O sogro não. Sentou-se ao lado do seu corpo já vestido. O marido a havia
arrumado com sua roupa preferida. Havia morrido dormindo vestida de camisola.
Achou muito chique...uma boa morte, mas agora estava se sentindo branca de neve,
por que estava translúcida com um vestido vermelho e um batom ainda mais
revolucionário e incrível, estava com um esmalte vermelho nas unhas que não
lembrava ter colocado na última vez que foi à manicure. Intrigou-se, mas não
deu tanta importância. Queria carregar a
cor da esquerda consigo. Seria cremada, mas o ritual do velório que detestava
seria cumprido em respeito ao sogro. Enquanto isso ficaria observando os
acontecimentos e esperando o que aconteceria no famoso depois da morte...por
que até agora tudo que tinha feito era andar de um lado para outro tentando
consolar a um e outro. As mesmas preocupações da vida a seguiam, filhas,
contas, trabalho, companheiro, sogro...e ainda queria tomar aquele café.
Estava
ali na sala de espera para algum lugar que não sabia onde era e se era...quando
chegou uma de suas amigas. Serena e calma tocou sua mão gelada e disse: “sei
que está bem e que ainda vamos nos encontrar, seguirei com o que
combinamos”. Sentiu um alívio, mas
observou que sua amiga olhava para seu companheiro e não para o seu corpo
morto. Oi? O que estava havendo ali? Ouviu a sogra dizer para o sogro: “o que
essa lambisgoia está fazendo aqui?” Seu sogro sempre muito calmo respondeu:
“não é da nossa conta” ao que a velha rabugenta respondeu: “claro que é. Essa
desavergonhada viveu entre eles dois a vida toda e agora até na morte?” O sogro
impassível retrucou: “a vida é dele, deixa que ele resolva, se com ela viva era
assim, imagine agora...”. Espera um pouco: as coisas estavam invertidas. Quem
ela tinha se desgastado a vida toda, estava ao seu lado inclusive na morte,
quem ela amou a vida toda não esteve ao seu lado nem em vida. Que porra era
aquela? Só faltava mesmo era que as outras amigas soubessem da sacanagem que se
revelava. Agora iria perseguir o casal de sacanas até o inferno. Olhou pela
janela e pensou: não me chamem agora...ainda tenho o que fazer por aqui. Viu o
marido num canto buscando solidão e a “amiga da onça” sentando-se ao lado dele
tocando suas mãos...que se esquivaram do toque. Curtiu aquilo à beça. Mas o que
estava fazendo? E o combinado? De que ele deveria seguir sua vida sem ela, e
recomeçar? Mas precisava ser assim tão cedo e com alguém com quem a tivesse
traído...? Pouco importa...que ele fosse feliz. Não, não. Também haviam
combinado de serem fiéis um ao outro e ele não havia cumprido o acordo.
Danem-se. Foi olhar as outras pessoas. Era curioso ouvir as pessoas falando
sobre suas qualidades, inclusive algumas que ela acreditava não ter. E lá
estavam as demais amigas. Será que eram? Será que sabiam da escrota? Foi lá...e
uma delas disse: “Agora não vou mais sentir peso na consciência. Não aguentava
mais guardar a merda desse segredo”. Falava para as outras duas que ouviam
estarrecidas e enojadas. Uma delas disse: “Ainda bem que eu nunca soube,
obrigada por não me contar”. O marido se aproximou das amigas e pediu que o
ajudassem com as meninas...eram adolescentes e tal e tal e tal...uma das amigas
disse: “filho da puta, vai pra puta que pariu”. Gritando isso saiu do velório
deixando o fantasma curtindo a festa. Entendendo do que se tratava, o viúvo
traidor recolheu-se com a morta enquanto o fantasma curtia sua dor e ao mesmo
tempo não acreditava nela até ouvi-lo dizer: “perdoe-me por ter te traído tão
rasteiramente, eu não suportaria seu olhar de reprovação quando recebesse a
carta anônima que deixaram embaixo da porta com fotos inquestionáveis, foi
preciso matar você”. Um flash de luz apareceu e ela lembrou da noite passada. O
vinho, o galanteio, eram namorados de novo, amaram-se e ele lhe disse coisas
incríveis. O que tinha naquele vinho? Não fazia ideia, só sabia que havia caído
no sono eterno e ele ficaria impune por que todo mundo acreditava que havia
sido morte natural. Mas...a sogra não deixaria isso passar: a velha bruxa não
parou de perseguir a amiga da onça...até descobrir em sua bolsa o vidrinho de
cianureto e na frente de todos e todas disse: “Ela matou, ela matou minha nora,
e eu provo: aqui estão as fotos que eu havia enviado anonimamente para a mãe
das minhas netas, ela é amante do meu filho faz 5 anos, aqui está o vidro de
veneno que encontrei na bolsa dela, e as unhas de minha nora estão cor de
violeta...tirei o esmalte vermelho que ela nunca usou e percebi isso. Quero uma
investigação”. Então era isso...a vida nos prova certas coisas incríveis e sua
parceira, a morte, também. Já chega, cansei, hora de acordar. Não era um sonho.
Era hora de ir. Mas e o café?
viajei geral nas novelas...
ResponderExcluirDê, adorei muito mesmo!!!!!!
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