Quinta-feira


Domingo era, com certeza, o pior dia da semana. A casa tomada pela presença contínua do marido e dos dois filhos. A folga da empregada que a obrigava a assumir, ainda que minimamente, a responsabilidade pela alimentação e limpeza daquele apartamento. Que ódio de quem inventou esses tais de direitos trabalhistas e ainda mais raiva de quem achou de imaginar que empregada doméstica era uma trabalhadora. Não entendia – e nem queria entender de política – mas sabia que após a exigência de assinar carteira da empregada, um amigo jurista do marido o convenceu que era melhor cuidar de alguns detalhes para evitar prejuízos maiores. Depois disso, o marido insistiu em dar folga a emprega após o almoço e limpeza da cozinha no sábado e o domingo inteiro, além de firmar o horário de trabalho durante a semana de 8:00 às 17:00.

Mas, não eram só as tarefas domésticas que tornavam o domingo o pior dia. Aguentar as crianças e suas necessidades constantes de atenção a cansava. Os pés do marido esticados no pufe, enquanto seu corpo disforme cobria desleixadamente boa parte de sofá traziam um misto de repulsa e indignação. Ele sequer fingia ter a gentileza de considerar seus gostos na hora de escolher que programa colocaria na televisão. Que inferno a criação desses canais de esporte! Agora era possível achar um bando de idiotas falando de futebol a qualquer momento do dia ou da noite.

Quando sentia que não suportaria mais, se esforçava para lembrar algum detalhe da última aventura de quinta. Apesar da distância temporal que apagava as impressões sensíveis fortes que a experiência gerava, ainda conseguia, vagamente, fechar os olhos e sentir aquele cheiro, o calor que emanava dos corpos.

A segunda e a terça eram um pouco mais suportáveis. Acordava para preparar o café. O marido saia para o escritório e ela levava os filhos para escola antes de ir para academia. Gostava da academia. Não só porque se preocupava em manter as curvas torneadas, ou porque suas amigas frequentemente elogiavam – não sem uma pitada de inveja – sua beleza, mas, principalmente, porque descobrira a importância do vigor e controle corporal para sua atividade de quinta. Voltava da academia, tomava um banho, assistia algum programa na tevê ou mexia no celular e já era hora de buscar as crianças. Mesmo quando o marido vinha almoçar em casa, o equilíbrio do dia se mantinha. Logo ele ia embora e as crianças eram empurradas para as tarefas escolares pelos professores de reforço, permitindo que ela se dedicasse ao que quer lhe interessasse.

À noite, após o jantar já feito pela empregada, ela tirava os pratos sujos da mesa, dizia aos meninos para descerem para o playground, visitarem um amigo do andar debaixo ou, em último caso, liberava que jogassem seus videogames. Aturava os resmungos sobre o escritório do marido fingindo atenção ou seja lá o que fosse que ele quisesse ‘conversar’ com ela – na verdade, ele conversava só, ela era a figurante necessária para dar à cena a composição exata que divide o falar sozinho do conversar. O sexo também não era um grande problema. Raramente o marido a procurava e, quando o fazia, ela sabia que tudo acabaria logo. Cinco minutos de sofrimento eventuais para manter seu estilo de vida era um preço que ela já tinha se acostumado a pagar. Mentira! Sequer pensava sobre isso, só cumpria o requisito que seu lugar de mulher de família pedia. Sabia que era também assim a vida de todas as suas amigas, como fora a de sua mãe e das amigas dela.

A quarta repetia o mesmo esquema, mas era marcada pela excitação da proximidade da quinta. Era o dia em que ela pesquisava o local onde agiria. A preparação da ação era cautelosa, não por medo de que algo não saísse como o previsto, mas sim por ser um momento central de criação imaginária. Pensar nos detalhes lhe trazia um prazer mental e corporal. Não raro sentia vontade de se tocar e, usualmente, se masturbava antevendo a emoção que o dia de amanhã lhe traria.

Quinta tinha sido escolhida porque o calendário familiar estava totalmente a seu favor. Era o dia em que o marido nunca almoçava em casa, por causa da reunião dos diretores da firma no restaurante do clube. Os filhos ficavam na escola desde a aula matinal até às 17:00. Um santo quem resolveu oferecer a possiblidade de turno integral! Tinha esperança de convencer o marido a, no ano que vem, deixar as crianças nesse regime de segunda à sexta. A empregada pegava as crianças no colégio e os levava de táxi para casa. Chegando lá, encontrava com a colega que ela havia indicado para ser babá e que permanecia no apartamento até perto das 21:30. A contratação da babá foi uma vitória. Ela persuadiu o marido de que, assim como ele tinha direito de passar a quinta de noite com os amigos no futebol Society e no barzinho, ela também merecia uma noite para ela. Ele a fez jurar que nunca iria em algum barzinho da moda – ele dizia, e ela tendia a concordar, que era ridículo mulheres de mais de trinta anos acharem que são garotinhas de vinte. Ela assentiu de imediato, afinal, não tinha mesmo nenhuma intenção de ir a barzinhos ou de flertar por aí. Essa coisa de romance era, na sua visão, uma ilusão que nunca a enganara e que só levava aos caminhos que ela já havia percorrido: casamento e filhos.

Deixava os filhos na escola, ia à academia, voltava para o apartamento e tomava um banho caprichado. Colocava uma roupa arrumada – era preciso que pensassem que ela ia passar o dia com as amigas, então, nada de roupas casuais. Preparava uma sacola com seus produtos de higiene pessoal, uma calça jeans, uma blusa frouxa, um boné e a grande caixa rosa que tinha escrito na tampa em letras brilhantes ‘maquiagens’. Dirigia até o hotel de costume no centro da cidade. A reserva confirmada na quarta. Subia ao quarto, trocava de roupa e abria a grande caixa onde se encontrava aquele objeto fálico. Não conseguia resistir a tocá-lo levemente antes de retirá-lo e prepará-lo para uso. Punha o volume junto ao corpo, escondido pela roupa. Descia o elevador. Na porta do hotel, enfiava o boné na cabeça. Agora era só encontrar alguém. Um mendigo que aceitasse, sob uma desculpa qualquer, entrar no seu carro e seguir com ela a algum local.

Não tinha preferência por sexo, raça ou outra coisa, O que desejava era a palpitação que lhe tomava o coração quando o desespero da vítima se tornava evidente, o calor que se apossava do seu corpo quando o rosto da presa estampava a surpresa e a exaltação de seu poder embutida nas súplicas inúteis da caça.  Havia também a adrenalina do desafio de acertar a mira precisamente onde queria, do tato e peso da arma em suas mãos e da ideia de que a vida ou a morte dependiam de um movimento curto de seu dedo. E, por fim, o cheiro de pólvora, o sangue vermelho jorrado no chão, o quente se esvaindo do morto: a plenitude de seu gozo. Quinta-feira era o dia da semana em que ela se sentia verdadeiramente viva.

Comentários

  1. Texto novo, meninas!

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  2. Eu esperando alguém que iria para um motel escrever, iria transar com outra mulher numa esquina...vibrando...a bicha era uma assassina.

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    1. Eu só pensei num dia de folga absoluta kkkkkk

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  3. Eu precisava testar uma personagem principal escrota....

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