Sobre chuva e outras idiossincrasias

 

 

Passarinhos podem voar na chuva. Nada os impede, a não ser seu senso prático. Por que ou para que voar na chuva? Melhor um galho protegido, um ninho, um cantinho qualquer. Observar e esperar passar. Esse bom senso é invejável.

A chuva pode invadir a toca e esconderijos dos animais sinantrópicos e eles invadirem nossos espaços (como se não o tivéssemos feito antes). Nosso espaço circunscrito por paredes, construções, esse espaço que protege e limita. Limita e prende. Prende e encerra. Penduramos quadros para que o belo nos engane. Fazemos janelas para amenizar a sensação de aprisionamento. Inventamos luxos para suavizar a limitação. Fingimos proteção (até a primeira barata, rato ou escorpião).

Passarinhos comem alguns sinantrópicos.  Num macrossistema fechado, composto por muitos microssistemas, tudo acha jeito de fim e decomposição. Só não o plástico, este é intruso.

(Os intrusos podem ser sorrateiros, quando querem se estabelecer em coexistência, dominam por contiguidade e quantidade. Ou impositores, afrontando o estabelecido e varrendo o assentado. Intrusos são invasores? Pode ser... Talvez.)

Pensou tudo isso enquanto ouvia a chuva caindo, variando em intensidade, a noite inteira de um sono leve e um amanhecer cinzelado pela água. Pensamentos intrusos, passarinhos e árvores molhados, poças em todo lado. Também o sentimento empoçado, encharcado de noturnas águas frias. Os dias que se ensimesmam em seguidas chuvas. Os ossos se enlodam, como o cimento coberto de limo, úmidos e frios. O céu gris desabando sobre absolutamente tudo e as horas paradas, escorregadias, que engolem o dia sem comiseração.

A chuva sem trégua. Os pensamentos sem trégua. E a irritante sensatez dos passarinhos que não voam na chuva (embora possam fazê-lo). Afinal ser insensato é uma escolha? A inexorável razoabilidade dos sensatos molha-se, mas tem asas impermeáveis.

Comentários

  1. "Choveu durante quatro anos,onze meses e dois dias." Sempre q a chuva se estende lembro dessa passagem (Cem Anos de Solidão)... Hj escrevi.

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  2. denisesn1301@gmail.com18/8/20

    Que lindo, Rapha. Senti me tomando banho de chuva, e me deu uma súbita vontade de voar sob ela.

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  3. Leio tanta insensatez nos jornais, uma angústia de sentir-me intrusa num mundo avesso. Desejo uma chuva que lave tudo. Isso ou ser passarinho no galho e saber que um dia a tormenta passa e que poderemos voar em tempos melhores.

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)