Soturno

Jogou a garrafa, com muita força, contra a caçamba. Os cacos menores no chão brilhavam sob a luz do poste, pequenas centelhas de ira. Não pareciam estrelas. Os cacos maiores mereciam ser arremessados outras vez, ter o mesmo destino, serem estilhaços amorfos. Assim o fez. Nem suou. Ou seria o sereno da madrugada enganando seu corpo? Seus pensamentos claros misturavam-se aos turvos, como uma água de rio, depois da chuva que revolve o fundo.

Sentou no meio fio da calçada. Gostava daquele silêncio povoado da noite. Outros sons. Outras vidas. Os ocultos pelo escuro, os vistos pelos fachos flutuantes de luz pálida. Gostava do cheiro. Com os braços dobrados sobre o joelho, ergueu o pescoço. O céu estava estranho. Apoiou as mãos para reclinar o corpo, esticou as pernas, uma sobre a outra. O céu estava tão escuro, sem nenhum ponto de luz, sem lua, sem estrelas, uma nuvem enorme encobrindo tudo. Sentiu vontade de deitar, mas levantou e voltou a caminhar.

Ouvia o som do jeans roçando entre as pernas, alguns ratos guinchando entre o lixo e uma boca de lobo, sentiu um calafrio de asco, pura repulsa. Gatos fodendo em algum lugar. Cachorros uivando, uns presos, uns pela rua. A noite era uma festa sem convidados, só penetras, só os petulantes.

Conhecia bem as ruas. As casas com muros baixos, algumas com portões (igualmente baixos e só no trinco), umas roseiras nos jardins, ou damas da noite embriagantes, poucos com hibiscos ou azaleias, raros sem nada. Não andava pelas calçadas, um tanto quebradas. Árvores, raízes que estouravam o cimento, armadilhas na irregularidade. Queria saber onde pisar sem precisar olhar pro chão, embora caminhasse com a cabeça baixa. O caso era a obrigatoriedade, não se queria com obrigação de “olhar onde pisa”, “olhar onde vai”, “olhar...”. Queria olhar e não precisar ver. Queria o olhar livre, desimpedido, como o pensamento. Caminhava a ermo, pelo prazer de andar, arejar a vida.

Quando sentiu a ira diluída, assoviou um trecho de Perfídia, não sabia a letra, só a melodia do que devia ser o refrão. Servia, contentava-se, alteava o assovio conforme apertava o passo. Chegou ao bairro das putas, o paraíso de Lúcifer, recanto dionisíaco em qualquer buraco do mundo. Nenhum desejo se insinuou, nenhuma urgência, nenhuma vontade. Nenhum peito igual ou diferente ao seu, nenhum orifício, nenhum artifício. Atravessou ouvindo risadas forçadas, perdidas atrás das paredes, um ou dois gritos, talvez um tapa, umas garrafas ou copos se trombando. Nada demais.

Caminhou.

Respirou a noite e a escuridão, seus pulmões encheram-se de um ar frio e implacável. Um tipo de angústia esganava seu coração, mas não o suficiente. Os olhos firmavam-se nas luzes amarelas, mas elas dançavam. Da borda da cidade tudo era longe e estava dentro e ficava perto, então. Mas não estava lá. Não estava em nenhum lugar. Pairava como um pensamento que se desapega da razão. Jogou uma pedra para quebrar a lâmpada do poste, errou. Tentou outra vez. E outras, até escutar o vidro partindo. Uma sensação de bem-estar fez com que quebrasse as próximas duas lâmpadas. Os cacos no chão, sem luz que os refletissem. O braço dolorido das muitas tentativas. A satisfação de merda com a escrotidão das ações. Não essas, todas. Não suas, do mundo. Cansou.

Cansou e sentiu frio, sentiu fome, vontade de deitar, mas também de caminhar. Vontade de voar... Mirou uma pedra num bicho que atravessava a rua, parecia um rato grande, acertou na sorte, de primeira. O bicho gritou e deu uma contorcida, fugiu como pode, não viu pra onde. Passando ao lado enxergou o sangre no asfalto, que nojo! Sentiu a ânsia lhe subir veloz, mas não vomitou. Correu rua abaixo, precisava de vento na cara. Cansou depois de umas duas ruas. Parou com as mãos no joelho, ofegando. Puxou o ar fundo e seguiu caminhando, passos lentos. O jeans roçando, uma perna na outra, aquele barulho que não podia parar. Talvez a borda do dia estivesse perto. Talvez a borda da vida estivesse no próximo quarteirão. Talvez a borda da noite fosse infinita. Só os estilhaços mapeavam seus passos no escuro da contramão.

Comentários

  1. A infinitude e as similitudes das ruas, dos becos...Eu amei Rapha

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  2. Adorei também,tia. "A noite é uma festa sem convidados, só penetras" é dessas frases que guardam um tanto de verdade sob seu véu poético.

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