A duas faces

 

Entrou num programa para deixar de fumar. Era uma decisão que havia tomado fazia tempo, desde que seu segundo filho nascera. Havia decidido que veria seus filhos crescerem e multiplicarem, sábia decisão, elogiou-se. Resolveu ser fitness e saudável. Comidinhas integrais, academia, bike, corrida...mas o cigarro estava difícil largar. Trocou cerveja por vinho, de vez em quando! Que vitória, mas o cigarro...ah esse de sabor fálico estava difícil. Precisava pensar que aquilo lhe mataria um dia. Concentrava-se no mal que o bicho fazia. Até a pele seca ele deixava!!! Trinta e oito anos e ainda queria ter carinha de trinta...comidas, exercícios...todas as coisas corretas da vida precisavam funcionar.

Um dia na auto estrada enquanto o marido dirigia e os dois filhos brincavam distraídos no banco de trás, ela ouvia música curtindo a paisagem, fotografando o pôr do sol, ou um lugar pitoresco aqui e acolá...ía pensando em estratégias para deixar de fumar. Pararam num café de beira de estrada, era uma casinha com a placa: TEMOS TAPIOCA E CAFÉ. Seu desejo de fumar acendeu a chama na sua cabeça com a junção das palavras café e cigarro. Ela e a família se deliciaram com a tapioca de goma fresca molhada no leite de coco, tudo produzido naturalmente pela dona do estabelecimento. Tudo natural sem agrotóxicos. Café pilado em casa! Fantástico. Ficou encantada, tudo ali tinha a ver com sua decisão de vida natural. Mas seu vício a espreitava e ao entrar no carro e olhar para a caixa que continha 19 unidades de cigarros não conseguiu se controlar. Ía elogiando a vida natural da dona da tapioca e todas as outras coisas...quando acendeu o maldito e ouviu o marido dizer: “não adianta toda essa natureza se você continua se matando”. Aquilo foi uma afronte. De súbito o cigarro recém aceso estava sendo jogado fora da janela do carro e a partir dali teria vida nova.

Lá do alto ela via seus filhos queimando. Fora só um cigarro jogado fora (o que é fora?) do carro. Cada um deles que queimava não tinha para onde escapar, não se sabia de onde vinha e onde acabava a flor vermelha. Estava para todos os lados. Calangos, preás, formigas, cobras, grilos, todos eles viram seu lar virar chamas e em busca de fugir da vermelhidão daquele calor só encontravam mais fogo. Cansados, sufocados e queimados se uniram à terra empretecida. Lá do alto ela tudo via sem nada poder fazer. Apenas torcia para que alguma alma generosa pusesse fim àquela destruição que começou na decisão de uma vida nova. Pediu socorro aos céus para que pudessem chorar muito e salvar parte de seus filhos ainda aturdidos no meio do caos gerado por um pedacinho de papel com algumas ervas dentro. O vento se sentiu culpado por que não conseguiu parar o rolinho branco que girava do asfalto para o mato amarelado pelo verão e quanto mais ele soprava, mais a flor escarlate seguia rumo ao povoado que ali estava. Do alto de seu trono ela tudo via. E viu também quando toda a plantação de mandioca e coqueiros foram tomados pelas brasas carregadas levemente pelo vento que insistia em rodar desbaratinado tentando não piorar as coisas. A tapioqueira  fechava as contas do dia e estava feliz com a última venda. “A moça do carro cinza havia comido muito com a família e levado várias tapiocas para a semana”. Havia sido um bom dia de vendas. E mal terminou de contar o dinheiro, assistiu ao fim de sua plantação destruída. Ao fim do dia não havia pedra sobre pedra...só o silêncio e o cheiro do torrão defunto.

Três anos depois, passando por aquela estrada, uma ex fumante lamentou que os moradores queimassem tanto as terras de modo que elas se tornassem improdutivas. Imaginou que se cuidassem melhor da natureza poderiam viver dela e não precisariam de ajudinha do governo. E por fim quando procurou o café com tapioca da beira da estrada lamentou que aquelas pessoas tivessem desistido de um negócio tão promissor – “aff que povinho tupiniquim, não sabe mesmo empreender”. Seguiu feliz consigo mesma e pela força que tinha para conseguir tudo que queria.

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