Verdadeiros Heróis

 

Desde criança sentia uma imensa vontade de atravessar a tela da TV e entrar nos seus programas favoritos. Queria muito, muito mesmo pedir ajuda aos heróis da Liga da Justiça. Quantas vezes viu seu pai bater na sua mãe e queria aquela correntinha da Mulher Maravilha pra dar uma sova no safado? Queria tanto a sagacidade do Pica-Pau e conseguir desdobrar os meninos que riam das suas calças rasgadas. Sentia que seria muito divertido tacar o bico no bumbum deles. Sonhava com o dia em que entraria na telinha e voltaria no cangote do Super Man ou pendurado na teia do Homem Aranha e viria com tanta força que destruiria todos os bares onde seu pai e tios bebiam. Quebraria todas as garrafas que faziam os homens ficarem maus. Uma vez sonhou que era um dos Super Gêmeos. Passou o dia sonhando em ter aquele anel. Quando não aguentava mais ouvir o choro de sua mãe, e a lamentação de sua avó por que seus filhos também bebiam muito e brigavam entre si, queria muito atravessar o oceano montado em Mob Dick. Aquela baleia seria sua melhor amiga e nunca bateria no seu ouvido até estourar e quando necessário ainda o ajudaria a resolver os problemas. Passava horas imaginando qual dos X-Men ele deveria ser: Tinha uma vontade arretada de ter as garras do Wolverine e enfiar na goela dos homens de sua família que maltratavam as mulheres que sempre pareciam não ter nenhum super poder, eles por sua vez, pareciam ter o poder do Xavier de controlar as mentes, pois elas sempre faziam o que eles queriam, então preferia não ter esse poder. Gostava do poder do Magneto, controlar os metais, mas desde que viu seu tio matar o vizinho usando uma arma de fogo, achou que os metais não lhe seriam simpáticos. Agora olhava para a Mística, uma perfeita possibilidade. Ela podia se transformar em quem quisesse. Era isso! Ele poderia ser um policial e colocar ordem nas coisas. Então lembrou da última vez que a polícia entrou no seu bairro, ela espancou seu irmão mais velho por este estar na rua sem camisa e sem documento que provasse que ele não era um tal Roberto. Não...não queria usar o poder da mística para ser um policial. Queria ser Deus pra organizar a vida das pessoas e colocar juízo na cabeça dos homens da família. Mas como iria copiar a forma de Deus se ele nunca aparecia? Que formato ele tem? Sua mãe dizia que ele parecia um anjo branco de olhos azuis e cabelos cacheados. Preferiu não confiar, parecia-lhe algo muito estranho esse modelo tão diferente deles todos. Esse papo de Deus cansava sua cabecinha de dez anos por que se tudo ele pode (como dizia sua vó), por que deixa coisas ruins acontecerem? Como a essa pergunta ainda não havia encontrado resposta, preferiu continuar fantasiando junto com seus personagens que lhe pareciam bem reais. O poder da Mística era tudo que ele desejava, mas como usar? Quem ele deveria ser? Que personagem poderia resolver junto com ele as tarefas de casa que ele não conseguia e ninguém poderia ajudar por que todos na família eram analfabetos? Que personagem poderia ajuda-lo a controlar as gozações na escola por ele ter cabelo cacheados e os colegas dizerem que água fugia de sua linda cabeleira? Qual personagem poderia controlar a fúria daqueles homens, em especial daquele tio que vez por outra entrava no quarto de sua irmã e a fazia chorar? Às vezes ele queria ser um raio pra exterminar todos eles, toda a vizinhança fofoqueira, toda a escola e deixaria somente o professor de História. Ah esse ele deixaria vivo. Ele tinha sido o único a lhe dar ouvidos. Acreditava nos super poderes, acreditava que ele poderia ser um super herói, permitia que ele sonhasse com o dia em que voaria ao lado do Super Man e lá do alto veria quando sua mãe correria perigo e poderia salvá-la. O professor o tinha presenteado com um HK do Quarteto Fantástico no seu aniversário, seu único presente de 10 anos. Ficou dias sonhando em ser o Tocha e tacar fogo nos homens e meninos cruéis. Seu professor de História não se incomodava que ele tirasse notas baixas na disciplina de História e sempre refazia as avaliações batendo papo. Depois da prova eles sentavam e conversavam longamente e o professor aproveitava seu conhecimento sobre cada personagem pra explicar a História real dos fatos. Narrou sobre a Segunda Guerra Mundial e por que o Capitão América e o Huck foram criados. Esclareceu por que os Estados Unidos e a Alemanha querem tanto um soldado perfeito o que leva o Huck a fugir constantemente. Esclareceu por que O Pantera Negra deixava Wakanda escondida – é que as pessoas tem dificuldade de ter acesso a metais preciosos e não fazerem destes, armas maléficas. O professor também explicou por que Magneto tem tanta raiva da humanidade. O fato é que o cara é um Judeu e seu povo foi quase exterminado por um ditador chamado Adolf Hittler. Ficou chocado em perceber que havia mais homens no mundo como seu pai e tios. Eles faziam parte de um grupo de seres miseráveis e cada vez mais queria o poder dos super heróis. Até que o professor de História lhe convidou para assistir a um filme com ele - A Lista de Schindler. Agradeceu ao professor pelo convite e pelo lanche, mas depois daquele momento não seria mais o mesmo sonhador de personagens. Entendeu que os grandes heróis fazem coisas com o que tem em mãos e não precisam de raios, metamorfoses, teias, cordinhas mágicas e etc. Precisava de um plano. Queria ser o herói de sua mãe, tias e avó. Só tinha dez anos e nenhum dinheiro. Como compraria a liberdade delas? Se abrisse a boca levaria um murro como da última vez em que pediu para seu pai parar de quebrar os poucos móveis que tinham (seu maior medo era que a fúria atingisse a TV).

Consumiu-se a noite toda. Foi difícil encarar os fatos. Ele não era nenhum dos personagens e nenhum deles sairia da tela para socorrer a ele e as mulheres da família. E ele não tinha os mesmos instrumentos que Schindler. Não dormiu. Cedo foi para a escola sem tomar café, até por que não tinha mesmo. Por sorte seria aula de História e ele poderia perguntar ao seu herói o que fazer. Espera? O quê? Ele tinha um herói que era de carne e osso e não estava dentro da TV? PERFEITO. Certamente seria ele o seu Schindler. Mal conseguia esperar o intervalo pra ir até a sala do professor e pedir ajuda. Nem fome sentiu. Enquanto todos se encaminhavam para a fila do lanche ele corria para seu salvador. Falou rápido o que desejava do professor, pois sendo um herói, ele sabia que não precisava de muitos detalhes para alguém tão inteligente. Alberto, um jovem professor que acabara de ser admitido pela escola ouviu com pesar a triste história da vida do seu aluno considerado um problema, por todos da escola. O garoto que tinha dez anos e estudava com as crianças de oito e ainda assim tinha dificuldade de acompanha-las. Depois de ouvir tudo, Alberto se sentindo impotente, disse que seu super poder era conhecer a história e assim tentava mudar o presente e o futuro. De cara, o menino frustrou-se. Do que adiantava saber das coisas e com elas nada fazer? Tentar mudar o presente e o futuro, para ele não seria o bastante. A volta para casa foi vagarosa e dolorosa. Teria de lidar com aquele inferno. Até quando? Chegando em casa, viu uma das tão costumeiras cenas. Sua mãe chorando e ao olhar para ela, lá estava o olho roxo. Pensou: não tem jeito, vou ter de matar o infeliz! Mas sou só um pivete. Sentou na calçada e viu a vizinha com um telefone na mão. Moça me empresta? Pegou-o e ligou para a polícia. Não se identificou. Algum tempo depois seu pai era levado e sua mãe chorava por que não sabia quem poderia sustenta-los. “E agora quem vai nos dar de comer? “Perguntava ela, praguejando a maldita vizinhança fofoqueira. “Ahh então esse era o super poder do seu pai? Comprar comida?”. Tudo resolvido.

-  Mamãe, por que você não faz comidas gostosas pra vender? Eu posso entregar na vizinhança!

- Não temos dinheiro para comprar nossa comida, imagine pra vender! Largue de ser bobo.

- Por que não vendemos a TV? Um dia compramos outra. Com o dinheiro da TV compramos a primeira leva de comida e depois já teremos um pouquinho. Havia aprendido isso na aula sobre como os Judeus eram grandes empreendedores. Professor Alberto o havia ensinado isso falando do Magneto, do Hitler e etc...e sua ideia, que a ele mesmo parecia boba, iluminou o rosto de sua mãe com um sorriso que ele não conhecia. Era esperança.

Venderam a TV, alugaram outra casa em outra cidade após três meses de venda de quentinhas, pois sua mãe não queria mais as lembranças daquele lugar, sua irmã não cabia em si, pois também havia dado parte do tio abusador e o mesmo estava foragido. Seu pai fora morto na prisão. O menino passou a trocar cartas com seu professor Alberto, para ele, eternamente O grande Herói da vida real que lhe mostrou a importância do conhecer a História. Mais tarde, o menino sonhador seria um grande educador de uma escola pública local.

Comentários

  1. Que coisa mais linda, Dê!

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  2. Acabei de editar...rsrs, como sempre eu deixo as lêndeas escaparem...obrigada meninas.

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  3. Esqueci de dizer, mas estou assistindo uma série japonesa o netflix (Erased) que me faz lembrar desse conto...

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