A máscara perfeita
Havia algo de muito familiar
na quarentena. O que seria tão confortável? Desde que tudo começou sentiu-se de
certa forma acolhida por algo que não sabia exatamente o que era. Até que num
determinado dia em que teve de sorrir sem vontade, lembrou que não precisava
fazer isso por que a máscara contra o vírus também a protegia dos vírus no
formato humanóide. Sentiu um acréscimo de estima por aquela sua máscara. Que
amor! Passou a vê-la como sua amiga íntima. Resgatou todas as máscaras que teve
de usar: aquela em que impunha um silêncio por ser filha, aquela que lhe
obrigava a falar por ser professora, e aquela que lhe obrigava a dar bom dia
para pessoas que desejava que tivessem sido extintas ou melhor: que nem
tivessem nascido! E as máscaras que lhe obrigavam a sorrir quando a vontade era
mesmo de mandar, num bom nordestinês, para a baixa da égua! Ah como odiava
aquele colega de trabalho e uma droga de uma máscara chamada “lugar de gestão”
a obrigou a ser cordial e dar-lhe o que ele não merecia: atenção. Uma das
máscaras mais irritantes para ela era aquela na qual a pessoa dá o que não
recebe. Ser educada com pessoa de caráter duvidoso. Essa máscara era a mais
escrota de todas. Havia um certo prazer em ser educada de forma cínica e depois
rir do idiota que achava ter ludibriado com sua linda retórica, mas é um
esforço que nem sempre estava disposta a fazer. Outra máscara desagradável: a
de gênero. Ficou imaginando qual foi sua cara, por baixo da máscara protetora
do covid e de si mesma, rsrsrs, quando seu companheiro teve um ataque de mansplaining.
Estavam dentro do carro e ele lhe ensinava sobre política, por acaso, um
autor sobre o qual ela dava aula. Ao olhar para o parceiro, com mil canhões nos
olhos, o mesmo não percebeu, até por que metade do seu rosto estava mascarado e
ela não precisou usar a máscara da pessoa que não vai começar um conflito por
que o outro foi criado numa cultura de merda que o ensinou que as mulheres são
burras. Então protegida pela máscara das máscaras, disse: “você me lembrou meu
professor de ciência política, a diferença dele pra você é que esse era mesmo o
papel dele, me ensinar política”. Companheiro calou-se, o rosto dela escondido
voltou ao normal. Ficou se perguntando como suportava usar tantas máscaras para
evitar uma guerra por dia. Lembrou-se de uma amiga lhe alertando o quanto sua
expressão entregava sua fúria numa determinada reunião. Nossa! Como a máscara
do Covid 19 fez falta naquele momento. Lembrou-se então de uma recente reunião
com um determinado dirigente institucional, na qual mesmo estando com a câmera
ligada, pode congelar a imagem de si com a mão na boca para que o mesmo não
visse o asco que sentia. Sentiu falta da máscara protetora de Covid humanóide
de novo. Por fim desejou que todas as máscaras caíssem. Desejou que as pessoas
pudessem fazer uso de mais franqueza com mais maturidade para suportar o pum do
outro. Odiou Rousseau por causa do maldito contrato social, mas o coitado só
deu nome às coisas. Elas sempre estiveram ali. Esse contrato adoecedor que
mente e nega muito do que somos nos cansa muito e nos faz acumular dores. Regras
sociais, são importantes, fazem parte do bem viver. Mas esse bem viver precisa
ser para ambos os lados. Não podemos encarnar a frase: “Você usa a máscara
tanto tempo que acaba esquecendo quem você é” do filme V de Vingança. Acima de
tudo, o mais importante é que essas máscaras não se acoplem aos nossos rostos,
sejam como a do Covid 19. As máscaras perfeitas são as que incomodam, suam, cansam,
mostram que não são parte de nós, são provisórias. Se alguém precisa usar uma
máscara o tempo todo para as coisas ficarem bem, é por que tem muito vírus por
aí sem vacina.
Gente, tá mais pra uma análise sociológica! Não que os outros não tenham, mas esse está mais analítico...porém como aqui a regra "somos nós"...
ResponderExcluirDê, gostei muito seja lá o que ele seja. A propósito do teu comentário: numa das cartas pra Rapha disse que às vezes eu criava mentalmente nomes pra os livros que reuniriam os escritos de vocês. O teu seria algo como A socióloga que virou índia.
ResponderExcluirGostei, eu só mudaria para: A socióloga que aceitou ser índia...
ExcluirJusto!
ExcluirNem sabia q tinha regra! Bela análise!
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