Desses acasos
Choveu em seus pensamentos esparsos. Àquela hora já não se atentava para nenhum em especial. Deixava que corressem soltos, conforme desejassem, não se metia. Não se obrigava a acompanhá-los. Ouviu um trovão longe e logo os primeiros pingos chegaram. Grossos e determinados a tirar o cheiro de calor do chão, embora fosse noite, antes de refrescar, arderia.
Esticou as pernas na espreguiçadeira, uma letargia gostosa acompanhava sua cerveja. Já quase virava outro dia e seus pensamentos brincavam na chuva. Observou o descascado na tinta da parede, precisava pintar. Podia ser de outra cor. Quanto tempo desde a última pintura? Não lembrava. Andava esquecendo umas coisas bobas.
A chuva em seus pensamentos refrescou a noite, deixou o ar com cheiro de molhado. A umidade quente do começo cedeu à suavidade da brisa e uma sensação agradável, e não muito clara, já tomava conta de si. Espiou os pensamentos, mais por hábito que por curiosidade genuína, gozavam tranquilos da brandura. Tomou mais um gole. Relaxou os ombros, o pescoço, o maxilar.
Viu que precisava trocar uma lâmpada, mas, honestamente, achou que preferia essa luz menos clara. Descansava seus olhos, dificultava ver as pequenas pendências de manutenção que se acumulavam com o tempo e a falta de coragem para resolver. Lembrou do seriado que assistia na infância, como era mesmo o nome? A bruxa que mexia o nariz. Estava vendo-a na sua frente e não conseguia lembrar o nome! Riu imaginando a cena dela com rinite, uma crise alérgica daquelas... Como era o nome mesmo? Precisava ir ao médico, ele diria que é cansaço, estresse, idade e tudo bem.
A chuva em seus pensamentos encontrou ritmo. Cadenciou seus desejos, acalmando-os. Era um conjunto bom: a sensação agradável, os pensamentos esparsos, o cheiro do chão molhado, a umidade que chegava em gotículas.
A cerveja acabou, tinha preguiça de buscar outra, de levantar, talvez dormisse ali.
Pulou no susto de uma freada brusca e o barulho de batida, bem embaixo de sua varada, sob seus pés. Como era o nome do seriado? Chegou no parapeito para ver o que aconteceu, a curiosidade sempre vence. Um acidente bobo, mais barulho que qualquer outra coisa, possivelmente amplificado pela quietude do avançado da noite. Ficou observando a movimentação lá embaixo, começou uma pequena confusão, gente nervosa, muita razão pra pouco entendimento. Cansou daquilo que se intrometeu no seu agradável, um pouco de frustração? Talvez... Não conseguia lembrar o nome de jeito nenhum, que coisa irritante!
Entrou na cozinha e procurou o interruptor, o cheiro estranho não era de chão molhado, enquanto acendia a luz, viu que esqueceu o gás ligado. Ainda bem que não houve nenhuma faísca, que perigo! Desligou o gás, abriu as janelas, precisava mesmo de um jaleco branco lhe dizendo que esses lapsos eram falta de sombra e água fresca, uns dias na praia e tudo se normalizaria.
A faísca estava no interruptor da varanda, na lâmpada queimada. O barulho ensurdecedor ganhou da batida. O vidro estilhaçado voou, pequenas estrelas palpáveis, também voara. Seus pensamentos, reunidos, olhavam pro acontecido e as sirenes estridentes estragaram a noite de vez. Se tivesse o nariz mágico... Como era o nome do maldito seriado?
Gente, fiquei com um medo no final...rsrsrs
ResponderExcluirTia, eu adorei, mas preciso dizer que esse final foi fod*!!! Inesperadíssimo!
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