Família

 


Olhou pela pequena fresta da porta. Não viu quase nada além da luz amarelada que indicava que, lá dentro, havia uma vela acessa. Espantou-se pensando que algumas pessoas ainda acendiam velas. Para ela, velas eram utensílios de bolos de aniversário e itens de um kit de emergência a ser acessado quando a rede elétrica falhava. Imaginou que a nova moradora do quarto 2 fosse religiosa e que a vela entrevista seria destinada a uma divindade qualquer. Provavelmente, um santo que fizesse a intermediação entre um pedido seu e o deus mesmo. Deus, afinal, deveria ter muitos secretários para dar conta de tantos desejos humanos. Homo querente, este deveria ser o nome de nossa espécie. Sapiência, convenhamos, não é bem nosso forte.

Resolveu voltar à cozinha e verificar se a carne já estava suficientemente cozida. Inventou de passar o tempo rearrumando as vasilhas de plástico na gaveta funda. Sem nada mais a inventar de tarefas inúteis na cozinha, saiu para o quintal para observar os pássaros retornarem à árvore frondosa que os abrigava todas as noites. Ouvia a algazarra dos pássaros enquanto acompanhava o suave movimento das folhas verde escuro que balançavam com o vai-e-vem dos bichos. Ficou em transe uns minutos, pensando em nada ou pelo menos sem ter consciência se algo ocorria em seu interior. Uma sensação boa de vazio e silêncio em meio ao barulho avolumado dos passarinhos. Levantou-se apenas quando lhe doeu a bunda pela dureza do chão. Faltava ainda mais de 1 hora até chegarem os outros habitantes da casa e ela colocar o jantar.

Sua vida, já se nota, era dividida entre os tempos alheios. Não que isso lhe incomodasse, se um dia tivesse pensado sobre isso – às vezes os narradores não sabem tudo sobre seus personagens, sabe?! – certamente concluíra que também os outros tem a existência pautada pelo tempo alheio. Somos todos, enfim, devotos a um alheio sem face bem definida. Seu dia-a-dia, porém, resumia-se a cuidar da casa-pensão. Os dois quartinhos de aluguel que pagavam parte essencial das contas tinham sido uma ideia que sua irmã, incialmente, contestara: “Vai perder sua privacidade em troca de um punhado de dinheiro?”, “Como saber se não vão ser os inquilinos ladrões?” Ela fez ouvidos moucos. Quando encafifava com algo, não importavam a racionalidade dos argumentos ou os apelos emocionais. Fazia e acabou.

Ao contrário de outras teimosias, o aluguel dos quartinhos não lhe deu dores de cabeça. Longe disso, incrementou seu cotidiano e ampliou sua vida social. Sim, ela entendia vida social como qualquer troca de “Bom dia” ou “Boa noite”. Se antes de tornar-se dona de pensão ela limpava a casa, agora ao varrer e passar o pano ela sentia um ar de relevância. Sentia-se não mais uma dona de casa seguindo a tradição milenar de alisar o assoalho, mas sim uma gerente de hotel que cuida do bem-estar dos hóspedes.

Seu Jaime alugou o quarto 1 logo na primeira semana em que o anúncio saiu nos classificados do jornal. Um senhor de 40 e poucos anos que, tendo crescido numa cidadezinha interiorana, agora havia vencido na vida e se tornado vendedor em uma loja no centro da capital. Quer dizer, quando seu Jaime alugou o cômodo 1 ele era vendedor, mas hoje, 4 anos depois, já havia alçado ao posto de gerente. Ela orgulhava-se muito não só da ascensão profissional dele, mas, principalmente, do fato dele, mesmo em plenas condições financeiras de alugar uma casa inteira só para si, ter escolhido permanecer no quartinho. Um dia, ele disse, inclusive, que, se dependesse dele, nunca se mudaria. Não queria casar – estava convicto que casamento era um problema desnecessário – e nem carecia de mais espaço ou conforto do que encontrava naquela residência.

O quarto 2 foi alugado, primeiramente, por um estudante recém chegado de uma cidade vizinha. Os pais vieram conversar com ela e instruir-lhe sobre o que o jovem Pedro poderia ou não fazer. Ela, que sempre entendeu que cada um cuida do seu cada qual, não contestou as regras que, a bem da verdade, eram simples e sadias. Pedro não estava liberado para sair depois das 22:00 e nem de ter chave da porta de entrada, de modo a garantir que voltasse para o lar antes do horário de dormir dela. Pedro ficou lá por 1 ano e, depois, os pais vieram dizer-lhe que, com o bom comportamento naquele período, já se sentiam confiantes para alugar-lhe um espaço inteiro e próprio.

Depois de Pedro, vieram Madalena, Luiz Jorge e Beatriz. Cada um do seu modo, foi realizando aquela etapa de viver compartilhando o ar e parcela da habitação com semi-conhecidos e partindo para o nível seguinte, seja ele qual fosse. Eventualmente, ela sentia saudades dos que se mudavam. Quando Madalena morava lá, elas tomavam café nos finais de tarde e, em muitos sábados, sentavam-se na calçada e conversavam. Por isso, a saída dela do quartinho 2 lhe tocou com uma ponta extra de tristeza e pesar.

Foi com grande alegria que ela recebeu a notícia de que, com a liberação do quarto por Beatriz, Madalena indicaria uma amiga para ocupá-lo. Esperançou-se que seria não só uma nova inquilina, mas uma amizade em potencial.

Santana havia chegado quase às 19:00 e nem sequer jantara com ela, pois acreditava que havia chegado demasiadamente tarde – mal sabia Santana que toda a refeição foi feita com o firme propósito de causar-lhe uma boa impressão. Ela, claro, disfarçou a decepção e não culpou a moça, havia realmente várias pensões marcadas pela rigidez dos relógios. No café da manhã, Santana fora muito simpática, mas ela pouco aproveitou. Não era mulher de muitas palavras logo cedo.

O fim fuzuê dos pássaros havia decretado o início oficial da noite, quando ela ouviu o tilintar das chaves na grade de entrada. Santana adentrou junto com o restinho de uma gargalhada e de braços dados com Madalena. Ela não conteve o sorriso imenso que tomou conta de seu rosto e sem pressa deu um abraço apertado em Madalena, dizendo que, por sorte, havia preparado aquela carne cozida que ela tanto gostava.

As três falavam animadamente quando seu Jaime abriu a porta uns quarenta minutos depois. No jantar, enquanto todos saboreavam a maciez temperada da carne com arroz e salada, ela teve a certeza nítida de que a noção de família a que fora ensinada estava errada. Família era aquilo: semi-conhecidos que, por puro querer, escolhiam estar uns com os outros.

Comentários

  1. Sua subversiva, me senti fazendo parte da família de tanta gente agora. Vão ter de me engolir.

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  2. Subversivas somos 😍

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  3. Tia, eu amei! Queria alugar um quartinho lá tb...
    Família é outro nível!

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    1. Todas temos quartinhos nessa pensão imaginada. 🥰

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)