Missivas

 

 


 

Meu querido amigo,

Por aqui o outono tarda a tomar conta dos dias, vai lento por demais, já maio e nada de frio. Mesmo as folhas estão preguiçosas no cair. Se eu falar que quando era menina, nessa época, o frio já se mostrava ao entardecer e era impossível dispensar um agasalho nas manhãs, serei muito démodé? Senti-me muito velha agora, muito longe... É assim.

Como caminha tudo por aí? Por ti?

Afinal, saiu o resultado do concurso? Serás, enfim, um funcionário padrão, em um emprego monótono, mas com um salário bom e certo? (Nem sei se “espero que sim”.)

Outro dia lembrei muito de ti, na padaria. Estava tomando o café do meio da manhã e entrou uma mulher com uma criança não muito pequena, devia ter uns sete ou oito anos (está cada vez mais difícil precisar essas idades, são todos umas miniaturas de adulto), estavam comprando o lanche para levar à escola. O menino queria porque queria uma fatia de bolo com glacê, esses bem melecados, bomba de açúcar mesmo, e a mãe insistia na “alimentação saudável”: ‘uma bisnaguinha integral com queijo branco, filhinho. Ou uma saladinha de frutas.’ Segurei para não rir, aquela mãe tentando fazer o “certo” numa padaria com bolo de televisão, meu Deus, que luta inglória! O menino emburrado, o argumento acabando, o tempo passando e o impasse estabelecido. Senti vontade de te ligar e por no viva-voz, posso até ouvir: ‘imagina se eu escolhia lanche! Nem sabia o que tinha, era tanta pressa pra comer e brincar no recreio, que não sentia nem o gosto do que comia!’ Acho que as crianças hoje já não brincam no recreio. Aliás, agora chama intervalo.

Depois passei o dia pensando nisso. Que coisa difícil criar filho hoje em dia. Qualquer hora sentamos sob uma amendoeira para falar sobre isso. Daqui um tempo, quando já tivermos criado os nossos.

Será que ter filhos foi o que nos adulteceu? Não creio. Mas, certamente, ter filhos foi o que nos distanciou da infância. Parece um paradoxo, né? Talvez seja.

Sinto saudades, querido.

Espero que apareça para um vinho...

Com amor,

 

P.S.: Sabe o ninho dos pardais com um chupim infiltrado? Está vazio. Não vi quando saíram e tampouco os vi ensaiando voo. Pode ter sido na semana que fiquei fora. Que pena... Gosto muito quando os filhotes começam a voar, parece que a coragem cresce em mim. Ando precisada de coragem. E quem não?

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 Ah, doce amiga,

 

Como lamento que tenha perdido o voo inaugural e agora só reste um ninho desabitado! Não vou dizer que logo outros chocarão porque já sabe, assim como eu sei que queria ver aqueles. Só lamento, mesmo.

Tenho querido muito sentar sob uma amendoeira, lembrar quem sou. Sou? Sentir essa leveza. Peso em mim mesmo, rareia-me o sorriso fácil. Será o cansaço da vida, do correr dos dias? Eu não sei. Desconfio que não queira saber. E se for algo imutável? Vai-se aí minha esperança, não, como dizes ‘a ignorância, às vezes, é uma bênção’.

Sei que deveria perguntar como foi a semana fora, como vão as coisas, essas amenidades. Mas não tenho vontade. Porque o que quero saber mesmo... deixa pra lá.

Ouvi o compositor que comentou da outra vez. Não canso de ouvir. Emociona-me. Assim como o menino comendo cenoura embaixo da mesa.

As saudades e o amor teus,

 

P.S.: Sim, serei funcionário padrão, cheio de tédio, bater o ponto sem promoção. Que emocionante visão de uma rotina sem graça... Sem tesão. Quase estou para rimas hoje, mas elas são tão pobrinhas! Desconfio que preciso de um ninho com passarinhos prestes a voar. 

 

Comentários

  1. Que delícias de trocas...fiquei sendo ela, depois fui ele..

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  2. Tia, essas cartas me deram vontade de reler um outro texto teu que também era uma missiva. Fiquei pensando se seriam complementares...

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    1. Mais do mesmo... Essa é a versão revisada e atualizada do texto q vc conhece (acho q só vc leu), adorei q tenha lembrado!

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)