O datilógrafo

 

tac tac tac tac tic tac tac tic

tic tic tac tac tac tac

tac tac tic tac

tic tic tac

tac tac tac tac tac

A cantilena das teclas não lhe abandonava. Mesmo depois de ter parado, enquanto dormia, ouvia o tac tac das teclas batendo, não sabia o mundo sem esse fundo, não sabia de si. Seus dedos tinham um longo caso de amor com a velha máquina, quanta fita trocada, quanto papel amassado, quanta luta para nenhuma glória. O tac tac das teclas era seu ruído habitual, no silêncio da casa vazia, entre os goles de café, tac tac tac tic tac tac, depois do cochilo da tarde, tac tac tac, entre uma garrafa de vinho e o jazz no rádio, tic tac tac tic tac. Nas madrugadas longas tac tac tac.

Olhava para velha companheira com a mesma paixão, como toda paixão, doía. O querer e o repelir, a ânsia ardente de estar com ela, o medo de não conseguir. Saber-se pequeno e dissoluto, sentir-se gigante e aniquilado, feliz e atormentado. Como toda paixão, sucumbia.

Uma vez quis enlouquecer, romper com a lucidez e o bom senso. A sensatez lhe pesava e não a queria mais. Quis ser louco manso, meio parvo, desses que conversam com os passarinhos. Depois quis ser louco surtado, agressivo, desses que jogam pedra, bomba, verdades. Por fim, não conseguiu enlouquecer, falava com os passarinhos e atirava verdades com tanta lucidez que não conseguiu, de fato, esgarçar os laços com a realidade; mas ficou com o querer atravessado, guardado em lugar que não o cabia bem, estorvando em cada coisa, igual quina de móvel mal acomodado. Onde estaria seu ponto de ruptura? Qual fragilidade mais vulnerável desconhecia?

tac tac tac tic tac tac

Nunca quis ser santo. Mas já cogitou testar o limite de sua depravação. Não deu certo, primeiro porque não achava que fosse depravação, depois porque viu que não havia limites, ou cansou-se antes de chegar nele. Desistiu, como desistiu de fazer o chuveiro parar de pingar, acabar com o rangido da porta da despensa e consertar a janela emperrada de um lado. Como desistiu de organizar os livros, oferecer gentilezas aos estúpidos e voar com asas pequenas.

tic tic tac tac tac tac

tac tac tac tic tac tac tac tac

tac tac tac

Quando quis dormir chamou um menino pequeno, desses que falam sozinhos e ficam entretidos muitas horas com as coisas mais inusitadas, para bater à máquina. O menino nunca tinha visto uma coisa daquelas, ficou apaixonado. Brincou que era adulto e riu sozinho, antes de ficar muito compenetrado, com os pequenos dedos dançando pelas teclas, por horas, por dias, por anos...

tac tac tac tic tac tac

tac tac tac

tac

Comentários

  1. Lembrei do Charlin Chaplin em Tempos Modernos e de mim mesma quando fiz o curso num passado muito distante, o tac tac tac ficava no meu juizo.

    ResponderExcluir
  2. Quantas vezes eu quero ensandecer...muito bom...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)