Óculos
Começou
sentindo um leve incômodo quando anoitecia. As luzes dos carros a deixavam
confusa sem saber direito quantos veículos havia a alguns metros à sua frente.
A luz traseira dos faróis parecia se multiplicar a depender a distância em que
os carros e motos estavam dela. Não era nada, efetivamente, preocupante, uma
vez que chegando um pouco mais perto a profusão luminosa se regularizava e ela
conseguia identificar precisamente o que estava ali além do para-brisa. Só
decidiu procurar um médico quando vieram as dores de cabeça. Saiu da consulta
do oftalmologista direto para uma ótica, onde, após uma série de tira-e-põe de
óculos achou um que ganhou a melhor aprovação da amiga que a acompanhava e do
vendedor. Ela mesma, porém, achava que usar aqueles antolhos era incompatível
com seu rosto. A incompatibilidade dos
óculos não tinha a ver com o formato ou cor da armação, nem com uma vaidade
menor. Ela só não conseguia acatar
racionalmente que, de agora em diante, um penduricalho iria juntar-se a sua
face como um item obrigatório toda vez que desejasse ver com nitidez. Essa
sensação de estranheza só se intensificou quando o objeto ficou pronto. O peso
no nariz. O desajeitado das pernas encostando nas orelhas. A imagem de uma
mulher diferente no espelho. Tudo lhe fazia odiar aquelas lentes emolduradas
que barravam o acesso direto a seus olhos.
A resistência aos óculos só tardou sua adaptação. O primeiro mês inteiro
foi um tormento. Pensou em experimentar lentes de contato, mas desistiu ao
imaginar que precisaria manipular aquelas coisinhas quase-invisíveis depois de
suas noites de festas e muita bebida com as amigas. Finalmente, cansou de
brigar com o inevitável. Em poucos meses os óculos se tornaram seus parceiros
fiéis. Ao contrário do que imaginou no início, o objeto integrou-se
perfeitamente em seu corpo. Não raro, entrava no chuveiro com eles ou, pior,
saia caçando-os enquanto os danadinhos estavam bem assentados sobre suas
narinas. Era a última coisa que tirava antes de dormir e a primeira que
colocava ao acordar. Certo dia, numa
dessas distrações banais, foi ajeitar o cabelo e bateu na ponta da perna esquerda
dos óculos fazendo-os voarem com violência.
Partiu no meio. Nos dias que seguiram, ela não sabia o que a enervava mais, o
embaçado do mundo ou a sensação permanente de que lhe faltava um pedaço.
Descreveu minha vida. Perfeitamente.
ResponderExcluirSó nunca cogitei as lentes... rsrsr
ResponderExcluir