Quando o relógio bate
O
celular tocou a música destoada. Já era, novamente, hora de acordar. Virou-se
para o lado contrário contando até 60, a concessão medida que dava a si mesmo
antes de levantar e enfrentar o mais do mesmo dos dias. Deu continuidade à
rotina: 10 minutos no banheiro, 20 minutos para preparar e tomar o café da
manhã, 25 para tomar banho e arrumar as coisas na mochila. Tudo cronometrado meticulosamente.
Preciso. 55 minutos, 3.300 segundos e mais 5 minutos (300 segundos) de ‘folga’
para imprevistos.
Pegou
o ônibus das 6:45 – que sempre passava entre 6:48 e 6:52. Conseguiu encontrar
uma vaga ao lado da mulher gorda que já suava nas axilas molhando a blusa azul
marinho que vestia. Evitando roçar sua perna na da mulher, espremeu-se junto à
janela, como se estivesse interessado na paisagem. Não estava. Mas a vista é
bicho sujeito ao mundo. Esbarra no que não quer e, uma vez que as imagens tocam
os olhos, nada mais temos a fazer senão processá-las. Foi assim que viu a
pichação ‘caveir@s’ no muro da fábrica de tecidos. A imagem-palavra deve ter
feito ressoar um sino dentro dele e despertou o menino de 10 anos. Viu-se invadido
pela própria voz cantando ‘Tumbalacatumba tumba tá’. Pasmou ao se dar conta que
sabia a letra inteira.
No
início a música impregnou-lhe como uma recordação infantil, porém, não tardou
em o adulto começar a escutá-la com seus ouvidos envelhecidos pela aridez de
uma vida maquinal. Notou que as caveiras saiam da tumba, pintavam as unhas,
imitavam chinês, tiravam retrato, apertavam os cintos, jogavam xadrez, vestiam
shorts, comiam pastéis e biscoitos, se escondiam e, enfim, voltavam para tumba.
Mesmo mortas, as caveiras reviviam uma vida ilógica comandada pelas batidas do
relógio. Entendeu que era caveira. Uma caveira sem direito a jogar xadrez ou a
comer biscoito todo dia. A canção do menino se tornou a maldição do homem.
Odiou ser caveira.
Às
18:34 subiu no transporte lotado de volta para casa. Era novamente hora de
esconder-se, recolher-se na sua tumba particular. Esticado entre a barra
amarela no alto da condução e o chão onde se travava a batalha silenciosa entre
dezenas de pés, pensou em gritar. Se ao menos pudesse puxar o fio para descer
no próximo ponto, talvez sentisse algum conforto. Desceu na parada costumeira.
Noite de lua entre nuvens. No bar, caveiras comendo pastéis e bebendo mais um
trago. Tumbalacatumba.
Errou
– é possível errar de propósito, não é?! – a porta do prédio. Caminhou sem rumo
sentindo o bafo quente da noite daquela cidade maltratada que chamava de sua.
Invejou a liberdade da ratazana que corria assustada com sua presença. Ao virar
uma esquina qualquer, deparou-se com um sujeito sisudo que rapidamente
aproximou-se dele. O cano frio do revólver em sua barriga. ‘Passa o celular’.
Entregou-o com movimentos lentos como manda a etiqueta dessas situações. O
gatuno sumiu na escuridão antes de ouvi-lo dizer baixinho: ‘Tumbalacatumba
tumba tá, nem todas as caveiras têm celular’.
Eu teria rido do gatuno que agora teria a coleira eletrônica que tanto me atormentava.
ResponderExcluirEu pensei nisso!!!
ExcluirMto bom! Sagaz e inesperado, um certo humor negro (adoro!), só não perdoo a música q grudou em mim tb... kkkkkk
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