So beautiful


Foi dormir ouvindo a rádio que tanto gostava e nela tocava a música So beautiful.  Dormiu. Encontrou-se consigo mesma duas décadas atrás. Naquele mesmo quarto, viu-se arriada numa cama, dormindo um pesado sono enquanto a mesma música tocava. Olhou-se e sentiu inveja de si mesma. A pele firme, lisa, sem nenhum cabelo branco. Pensou: “sou eu mesma?! Como posso não ter me visto assim na época?” Seguiu admirando ao próprio corpo vinte anos mais jovem até que viu que o velho e conhecido quarto não tinha UM livro sequer. Havia pouco a ser contemplado no quarto. Uma fotografia sua na parede na qual ela não se reconhecia. Viu-se acordando. E sentou pra se admirar. Aquela experiência estava sendo incrível até o momento em que percebeu que sua versão jovem estava sentada no vaso sanitário entre choro e vômito. Uma ressaca infernal. Um banho e o corpo jovem aparentemente alcoolizado voltou pra cama pra chorar mais um pouco. Uma amiga liga e ela narra o fim de um relacionamento. Lembrou daquele momento do passado que hoje parecia tão insignificante, mas porque sua versão jovem sofria tanto? Ele nem valeria à pena. Sua versão velha tinha visto isso, um ano depois. A versão novinha ainda sofreria por mais de um ano pelo embuste que no futuro se provará um apoiador de políticos que ela jamais votaria. Pensou: “por que eu não consigo entender que aquela relação era um fracasso? Como sou burra! O fim desse relacionamento foi libertação e começo de uma nova vida!”. Com ódio de si mesma queria pegar-se no colo e dizer-se: “você não precisa desse lixo, você se basta”. Sofreu por se ver sofrendo e perdendo tanto tempo com o fim da relação que nunca prestou, a não ser na sua carente cabeça.

Não conseguia se comunicar, mas queria oferecer para sua versão jovem, um livro, um poema, algo que a tirasse da fossa mais cedo. Não havia nada naquele quarto. Ouviu a jovem dizer que queria se matar, e percebeu o quanto se doou para pessoas erradas, por motivos errados. Ouviu a outra dizer que a vida tinha perdido o sentido e que não conseguiria seguir sem o tal rapaz. Perguntou-se, na velhice, o que eu vi nele? Inconformada com a situação de sua versão jovem que repetia e repetia So beautiful na fita k7 ficou a observar a degradação de seu corpo conduzido pela dor. Olhou no canto da parede e viu uma imensa quantidade de latas de cerveja e de pontas de cigarros. O quarto era uma tumba de uma pessoa viva. O que havia de tão bonito ali, como sugere a música? Sua versão novinha chorava e se enrolava no inglês olhando a foto do rapaz e dizendo So beautiful. Ficou enojada de si mesma. Não tinha mais nada para admirar? Será possível? Saiu em torno de lembranças daquele momento que explicassem como alguém tão pequeno como seu ex poderia destruir alguém tão forte como ela. Cansou de si mesma. Que pesadelo se ver naquela condição de resto de gente. O incômodo foi tão grande que acordou, Chris de Burgh continuava cantando I never knew that love would be so beautiful to me.

A incompatibilidade da letra da música com o rapaz do passado era irritante e inaceitável. Olhou em torno de si, e viu o marido e o filho dormindo. Viu seus livros, e no canto da parede seu tênis de correr. Mesmo quarto, outro contexto, mesma pessoa com outras vivências, mesmo corpo, porém agora com rugas. Teve comiseração de si mesma e viu que sua versão mais nova só tinha de beautiful, o rapaz que a havia deixado. Sua versão atual tinha uma vida tão bonita que fora construída com o sofrimento da outra. Agradeceu pela força que tinha dado a si mesma, perdoou-se e voltou a dormir.

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