4 escritoras tortas

 

São 4. Cada uma de um lugar. Conheceram-se ao acaso, como todo mundo se conhece nessa vida. Até as mais tradicionais famílias, com suas genealogias bem desenhadas e certificadas, são acasos que se enrijeceram com verniz de natureza. Elas não são da mesma família no sentido estrito. Se o termo puder ser esticado, diremos que elas se fizeram família nos barrancos, quando seguraram umas nas pernas das outras para não se esborracharem na dureza do chão que abria sua bocarra famigerada e devoradora de levezas. De seu encontro, produziram-se risos, lágrimas, ideias e muitas palavras.

Não há uma ordem entre elas. Mas, para escrever, é preciso dar espaço ao inexistente solidificando-o. Assim, vou dizer que eram a primeira, a segunda, a terceira e quarta. Sem que a primeira ganhe ouro e a quarta não receba medalha. Entre elas, os troféus passam de mão em mão se sujando com o brilho oleoso que cada palma possui. A verdade é que são ricas em demasia. Têm a si e às outras. Mesmo que o precipício rígido e pontiagudo da realidade as assuste, não perdem de vista – a não ser nos momentos em que o grito do fundo do abismo atordoa o tímpano da alma – que agarradas conseguem não só resistir, mas até fazer pouco do real. Juntas, mostram a língua aos fatos e os provocam com piadas. Ninguém que saiba contar e entenda de economia contestará: maior riqueza não há.

A primeira é filha do ar. No reino em que nasceu manda o vento. Ela, claro, sabe voar. Suas grandes asas precisam de espaço para bater. Não suporta confinamentos emocionais ou intelectuais. Se lhes cutucam as enormes penas coloridas que se preparem para bicada. Sua vida é como o céu que, não sendo sempre azul, nunca deixa de ser imenso. Ela seria a casa do infinito se um dia o infinito tivesse casa.

A segunda é das matas. Como uma grande árvore, avista-se de longe. Forte e de pés fincados no solo, ela é esteio de muitos. Nela moram passarinhos – é possível que isso explique a intimidade imediata com a primeira – que ela protege das intemperes. Seu tronco é grosso, como sua voz pode chegar a ser se ela pressente a presença dos que causam dor aos pequenos – dos sibites às lagartas. Entretanto, é sua copa de folhas verde escuro que reluzem ao sol que a todos impacta. É mulher-árvore-do-sertão. Na seca, enquanto todos a sua volta amarelam, ela segue sendo sombra aos animais, ao mesmo tempo em que negocia com as nuvens o próximo cair das chuvas.

A terceira nasceu do fogo. Ao lado dela, ninguém padece de frio. Intensidade é seu nome. Não sabe ser metades. Nela tudo pulsa. O amor é o único idioma que entende. Seus olhos carregam o pai-fogo e, em sua boca, as palavras viram faíscas que acendem luzes nas cavernas mais escuras. Cheia de graça e dona de uma risada explosiva, não desmente o ditado de que não se deve brincar com fogo. Diante de uma injustiça, cuspe labaredas e incendeia quarteirões. Como uma fogueira na noite do campo, ela protege, ilumina e aquece quem se senta ao seu redor.

A quarta veio do mar. Numa aparente repetição de ir e vir, mexe nas areias da praia, movimenta as conchas e, com sua insistência, pode furar concretos e derrubar muros. Acostumada com o gigantismo de sua residência original, onde os vizinhos são raros e de pouca conversa, busca, eventualmente, pelos silêncios e pelas solidões. Ouve no vento as histórias que derrama no papel e, se se concentra o suficiente, pode se tele transportar para beira do oceano. Deve ser por isso que há quem, na presença dela, seja remetido ao embalo suave das ondas.

Em cada uma, um elemento, uma natureza forte e irredutível. A lógica supôs que ainda que habitassem no mesmo barranco, nunca se uniriam. A pobre da razão pensou que o ar não suportaria a firmeza da mata. Que a mata temeria o fogo. Que o fogo evitaria o mar. Mas, elas, tortas como são, inventam tudo diferente. Com o ar, a árvore ganha asas, o fogo se diverte ao balançar e o mar tem com quem conversar sobre a imensidão. Com a mata, o ar se renova, o fogo tem combustível e o mar se deslumbra com o farfalhar das folhas. Com o fogo, as asas se abrem para ver aquela beleza de cima, a árvore vê a potência imanente ao seu tronco e o mar enxerga como seria se suas ondas fossem ser portáteis. Com o mar, o ar vislumbra que o vai e vem pode ser um jeito de ser livre, a mata se acalma e o fogo pode sentar-se e curtir a brisa.

4 escritoras tortas. Um universo inteiro entre parênteses.

Comentários

  1. É eita atrás de eita! Que bela representação, que coisa mais verdadeira... O melhor parênteses que existe, o que criamos e alimentamos generosamente. Há orgulho em mim, admiração por cada elemento e gratidão pelo encontro e a permanência.

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  2. Valha minha nossa senhora das escrituras tortas! Eu me reconheci nas 4, sempre que eu achava que eu era uma, ficava em dúvida na próxima. Depois me decidi por ser a segunda, nas vendo que há nas outras várias nacos de mim...pq somos isso mesmo: uma família torta entre parênteses.

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