Apagar ou não apagar? Eis a questão!

 

Assassinei sem o menor pudor minhas palavras. Apaguei-as com dois cliques. Se ao menos tivessem sido escritas no papel, eu teria mais trabalho. A preguiça de esfregar a borracha e vê-la eliminar a existência das letras deve ter salvo algumas obras-primas. É possível que Shakespeare tenha jogado em seu lixeiro Romeu e Julieta. Se o romance chegou até nós e colhe os louros da fama por tantos séculos, foi por um acaso desses tantos que tecem a História. Talvez, ele tenha prometido a peça a algum editor e esse o cobrou. Ficando sem jeito de dizer que não havia escrito nada que prestasse depois de ter gasto o bom dinheiro adiantado pelo cobrador, Shakespeare colocou a mão no cesto de lixo e entregou as folhas amassadas. O editor tomou-o por excêntrico e seguiu com a publicação.

Não sei se foi assim com Shakespeare, mas se não foi com ele, algo semelhante aconteceu com algum dos clássicos. Nunca saberemos, porque depois de reconhecida a grandeza de um livro, os autores se envergonham de sua falta de discernimento e calam-se. Quem diria que aquela obra vencedora do Nobel só não sumiu prematuramente dada uma estranha conjunção entre sedentarismo e pressão social? Outro dia, vi num documentário que Gabriel García Márquez pensava que seu livro ‘Ninguém escreve ao coronel’ era sua melhor escritura. Vejam aí os indícios fortes de que Cem Anos de Solidão esteve à beira de ser aniquilado!

Os frívolos e bestiais parágrafos acima me colocam novamente diante do dilema: apagar ou não apagar? Se os deleto, somem para sempre do universo. Um tão crime perfeito que nem requererá investigação policial ou jurado. Todavia, terei que conviver com a minha consciência. Matar um texto é aceitável. Mas, o que serei eu se seguidamente tiro a vida de dois? Precisarei considerar seriamente se não terei derivado algum prazer sádico em torturar as letrinhas. Com minha moralidade pequeno burguesa, é possível que até tenha pesadelos com as palavras fazendo súplicas enquanto o preto de sua fonte se esvai com meu apertar de botão.

Perdoem-me, leitoras e leitores: prefiro dar-lhes o desgosto de ler um texto mal engembrado a me tornar uma assassina em série. 

Comentários

  1. Esses textos mal engembrados salvam o meu dia.

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  2. A coragem de escrever ou o cagaço de apagar, matando as palavras?
    O cagaço de escrever ou a coragem de apagar, matando as palavras?
    Reverberações em mim...

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)