Epifania
Nunca
havia entendido a noção de epifania. Quer dizer, tinha ideia do que se tratava,
mas compreender no sentido mais profundo, não compreendia. Era mais um
amontoado de letras como tantas outras palavras que ela usava eventualmente.
O
fato, porém, deixara de ser teórico ou semântico naquele sábado. O dia havia
sido como um outro qualquer. Acordar um pouco mais tarde, sem a artificialidade
do despertador. Lamentar que o corpo estivesse enrijecido nos velhos hábitos
semanais e, mesmo podendo desfrutar da maciez da cama e da brisa do ar-condicionado
até umas 9:00, ter se levantado para ir ao banheiro às 7:40. Enrolar lendo as
mensagens do WhatsApp, vendo o feed das redes sociais e as desgraças diárias
das notícias. Preparar o café, lavar a louça, deitar-se na rede, limpar a sala,
topar jogar com o filho. Enfim, tudo, absolutamente tudo, na rotineira e
confortante mesmice de todos os sábados daqueles últimos meses.
Após
o almoço e o assistir de televisão, era hora de arrumar-se para a saída da
semana. Ir à casa da irmã e beber um vinho vendo antigos clipes musicais. O corpo,
já acostumado com o ritual, não se entregava mais plenamente à sedução do álcool.
Ria mais fácil e cedia mais rapidamente aos impulsos de cantar ou dançar sem
grandes preocupações com o olhar alheio, porém, nada muito além disso. Não
havia ainda se dado conta intelectualmente, mas pressentia que até o relaxar
das regras tem sua normatividade. Acomodar-se parece ser uma lei suprema da
natureza, embora os humanos, aparentemente, tanto flertem com o desequilíbrio e
ambicionem o incômodo.
A
epifania tomou-lhe – descobriu que a epifania arromba portas, só sendo possível
nomeá-la a posteriore - antes do fim da garrafa de frisante. Via e
cantava uma música qualquer. Provavelmente, alguma de poucas qualidades técnicas,
mas repleta de qualidades emprestadas pela história de um tempo do qual só
lembramos as alegrias. E, então, formou-se silenciosamente em si a certeza de
que já havia, em outra vida, sido um som de gaita.
Percebeu,
claro, a estranheza daquela revelação. Jamais cogitara que os sons fossem vidas
e, menos ainda, que ela mesma pudesse ter sido som. No entanto, o estranhamento
não chegava sequer a fazer cócegas na luminosidade que aquela ideia carregava.
Era uma verdade incontestável, justamente, porque não é possível contestar a
veracidade de algo que não se reduz aos mesquinhos limites conceituais. Invadida
pela evidência, não se entregou ao ofício de entender. Sentiu que a vida de um
som soprado da gaita era uma benção. O nascimento e a morte eram banalidades na
perspectiva de um acorde musical. Tampouco interessa à sonoridade quem é
responsável por sua origem. Sua vida resume-se e alarga-se nos ínfimos segundos
em que, saindo dos furos da gaita, mistura-se com o vento, penetra nos ouvidos,
toca na materialidade que a rodeia. Esvair-se não é, senão, realizar-se
intensamente.
Terminou
o vinho. Conversou mais meia dúzia de frivolidades com a trilha sonora dos anos
80 apresentada pelo YouTube. Não contou sua epifania a ninguém. Guardou para si
a magia porque sabia que, quem não foi som de gaita em nenhuma vida ia tomar sua
epifania por embriaguez.
Francisca Denise Silva Vasconcelos
ResponderExcluirEu fiquei aqui só no vento que essa epifania me trouxe. Ouvi as músicas que eu quis e curti muito esse momento cá do meu sofá.
😍 ah...
ExcluirAlguém ser um som é uma imagem linda, forte é singela ao mesmo tempo.
ResponderExcluirMas, preciso confessar, de bem q desconfiei q tu foi um.som de gaita em algum momento, a gaiatice atual é resquício... 😏
😂😂😂e eu achando que era herança do Seu Bira
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