Indelével

 

 

Quando percebeu que os lapsos de memória eram mais frequentes, ficou incomodada. De chateada à irritada era uma oscilação constante. Da frustração à angústia foi um pulo. Pior que as rugas disfarçáveis, pior que as contornáveis limitações físicas, o traço da velhice que mais temia, avançava inexorável –gradativamente, esquecia.

No começo, coisas banais, uma janela aberta, onde deixou o livro, o vencimento de uma conta. Atribuiu ao estresse, ao cansaço, às noites mal dormidas. Logo começou a trocar alguns nomes, não lembrava de terem contado que alguém estava doente, morreu ou nasceu. Não lembrava os itens do mercado, atrapalhava-se um pouco com as receitas costumeiras, esquecia o que tinha almoçado. Achou prudente anotar o horário dos remédios e programar o despertador, foi criando estratégias e refugiando-se no silêncio quando se deu conta que já tinha contado a mesma história, e não se lembrava de tê-lo feito, em várias ocasiões.

A inquietação tomava conta de seus dias, sabia o que estava acontecendo e, pior, o que viria depois. Observava um tanto confusa como sua mente ia perdendo a clareza, a névoa, que encobria as memórias mais recentes, logo chegaria às mais importantes, às mais caras.

Sabia que essa lucidez tinha os dias contados, pra menos, claro. Em algum momento o fio tênue romperia e ela não se daria conta. Temia. Em si, percebeu uma crescente urgência, a necessidade de ordenação, de encaminhar as coisas enquanto tinha algum controle, ou melhor, enquanto conseguia disfarçar e minimizar o estrago progressivo da ruptura de si.

Achou que o melhor seria escrever, cartas, histórias, lembretes, notas, tudo e qualquer coisa que ainda lembrasse. Perdeu um dia inteiro preparando as canetas e o papel, na verdade criando coragem para confrontar as inevitáveis lacunas que a afligiam e seriam ainda mais flagrantes num texto sem coesão e coerência.

Começou. Seus dias, então, foram tomados de palavras, reminiscências, saudades. Às vezes fazia a árvore genealógica de um ramo da extensa família, só pra puxar algum fio de memória, alguma história. Arriscava uns desenhos, mapas e caminhava cada vez mais para longe, para os primórdios. Queria se iludir (e falhava miseravelmente), queria acreditar que era uma fase ruim, mas a todo momento se traía, não lembrava. Não alcançava aquela memória que pairava, suspensa entre permanecer ou se perder para sempre. Consumia-se, assim como consumiu a tinta das canetas, as horas, a clareza. Duvidava cada vez mais de sua capacidade, de si.

A fome e a sede passaram a necessidades secundárias, acabou desidratada. A confusão mental era decorrência disso, disseram. Ouviu cética. Calou. Na primeira noite que dormiu no hospital estava tão cansada que não sonhou. Dormiu um sono pesado, mas não o suficiente, acordou com a voz da mãe chamando, era mocinha. A mãe chamava pra tirar leite. Abriu os olhos no quarto desconhecido, teve medo, não havia vaca. Naquele dia não conseguiu lembrar do rosto da mãe, talvez tivesse uma fotografia, mas não estava ali. Ficou um tanto triste. Não lembrava do rosto da mãe, nem do pai, e assim eles morreram outra vez.

Amuou-se. Manteve-se retraída, ensimesmada, a angustia que sentia era inominável. O medo entranhou nos ossos, nos olhos, na alma. Queria falar, mas calou-se. Quando anoiteceu a filha foi pra casa, cuidar do marido que essas horas chegava do trabalho e queria jantar. Ficar sozinha nunca fora motivo de incômodo, mas naquele dia incomodou. Ficar sozinha significava ser sua própria companhia e hoje não era das melhores. Ficou.

Quando a amiga chegou sentiu um enorme alívio, ficou até alegre, eram confidentes há anos, sentiam-se muito à vontade uma com a outra. Tinha certeza que a amiga já tinha percebido tudo, mas era discreta o suficiente para calar-se, não a corrigir em algum equívoco ou deixa-la numa situação vexatória expondo seus lapsos, sua memória cada dia mais trôpega. Isso aumentava sua cumplicidade.

“Tá boa?” “Tô.”  

“Esqueci como era o rosto da minha mãe. Há muitos rostos e eu não a reconheço...”

Silêncio.

A amiga sabia que havia mais. Havia o inominável.

“Como chamava mesmo a menina?!” “Fátima.” “É.” “Ela era a minha filha mais bonita, um bebê lindo! Tinha uns olhos muito vivos, ria fácil. Era bochechuda, as mãos gordinhas... Era tão bonitinho, ela batendo palminhas!” Emocionaram-se com a nitidez da imagem, com aquela presença quase tangível. “Os irmãos não lembram, mas tem uma foto. Eu a vejo direitinho.” Fechou os olhos para acariciar a lembrança. “Ela ainda está viva em mim.”

 

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