O relógio mágico

 

O ano era 2080. A impressão que ela tinha era ter vivido dois séculos e não apenas um. Estava com 106 anos e viu mais do que seus olhos queriam ter visto. Amou o tanto que suportou e odiou mais do que suas forças poderiam permitir. Tinha vivido tudo que se permitiu e isso a fez feliz muitas vezes, realizada em muitos aspectos e lhe trouxe muitas dores também. Deitada na cama ao lado da janela do asilo que escolhera morar desde que completou 92 anos olhava a chuva fina que caia e percebia que com ela chegava D. Morte. “Nossa, faz tempo que lhe espero”! D. Morte, entretanto parecia não estar muito em forma e demorou a subir a ladeira já que o Asilo dos Vândalos ficava no alto de uma serra. Seu bisneto sentado ao seu lado, mostrava apreensão. Ela olhou para ele como quem pudesse esclarecer que a morte para alguém que viveu tanto em números quanto em emoções é como aquele momento em que se chega de um dia cansado, com os pés inchados, olhos ardendo, enfia-se no chuveiro frio, depois toma-se uma sopa quente assistindo a série favorita e por fim adormece o merecido sono. Assim é com D. Morte para alguns poucos privilegiados que morrem de velhice. É uma morte linda de se ver. O bisneto não concordava. Recusava-se a aceitar que o fim estava próximo. Ela então, resolveu dar-lhe um presente, talvez para consolá-lo. Entregou-lhe seu GPS, uma espécie de relógio antigo que as pessoas usavam para praticar exercícios físicos e ele registrava tudo: percurso, velocidade, tempo. Aquela relíquia não valia um real. Real? Havia esquecido qual a moeda da atualidade. O Brasil havia se dividido e cada Estado era um país diferente com uma moeda diferente. Ela não lembrava qual a moeda do seu país, nem o nome dele. Só sabia que era cheio de praias e matas lindas. Lugares por onde correu e pedalou. O GPS sabia de tudo, havia registrado tudo. Ela o tinha aposentado aos 95 anos, mas mesmo assim o usava para saber dos batimentos cardíacos e para olhar as horas, claro, pois sempre fora bem obcecada pelo controle do tempo.

O bisneto de 15 anos olhou para o GPS como quem olha para um sapo. A bisa disse: beije-o e ele pode lhe surpreender. O tempo pode ficar preso numa caixa e essa caixinha aí tem um tempo da minha vida devidamente preso. Sempre que sentir saudades de mim, vá me visitar nos lugares por onde passei. Dito isso fechou os olhos para sempre. Um repouso merecido.

Após velório e enterro, encontrava-se o bisneto pegando a caixa de objetos pessoais da bisa, no asilo que fora sua morada nos últimos anos de vida e enquanto arrumava ia vendo os guardados da velha mulher. Ela tinha o hábito antiquado de fazer álbum de fotografias. Encontrou álbuns de tantos momentos. Riu do quanto sua bisa se prendeu a coisas do passado. Tão simples ter as fotos num aparelho tecnológico que você pode simplesmente clicar e acessa-las a qualquer momento, porém pegou-se sentado no chão admirando as fotos impressas, e tão bem escolhidas. Fotos do seu nascimento, fotos do seu primeiro dentinho de leite e do primeiro dente permanente. Guardou tudo e por uma questão de respeito, disse a si mesmo que guardaria em lugar seguro. Abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e lá estava o relógio GPS que ela havia lhe dado, mas no momento em que entrou no sono eterno, ele jogou o relógio na primeira gaveta para buscar socorro. Agora iria usá-lo para sentir-se perto dela.

GPS no pulso e? Ele estava ali em Jeriquaquara. Uma corrida na praia – 12km que sua bisa tinha participado no ano de 2018, bem antes dele nascer. Viu sua Naná, como ele a chamava, correr mancando por que estava com o nervo tibial inflamado. Viu como as pessoas se comportavam com relação à natureza, corriam e bebiam seus energéticos e jogavam seus lixos no mato. A organização da corrida tentava limpar, mas era muita falta de educação para pouca gente trabalhando. Viu sua Naná chegar quase se arrastando naquela noite de Lua cheia na praia. A banda tocava Pink Floyd na espera dos corredores, e ele como fã da banda gostou do que viu, bisavó e bisavô curtindo essa música agora tão pouco valorizada por seus amigos. Ouviu a tristeza da Nana que iria entrar em recesso nas corridas devido à lesão. Mexeu no relógio e ele o levou para uma corrida em São Paulo, Naná estava desolada, quase se divorciando, mas correu mesmo assim, e o menino percebeu que desistir de algo nunca foi opção para sua bisa. Numa outra viagem foi para João Pessoa e nessa corrida, a bisa estava eufórica por que correra ao lado de um cacique dos índios Xerem. Tantas trilhas ela fez nas terras do povo Anacé. O garoto conheceu diversas etnias viajando no tempo do relógio da bisa. Ele a viu esquadrinhar toda a cidade sua cidade montada na sua bicicleta comprada com a grana de uma rifa. Que meio de transporte estranho esse no qual as pessoas devem fazer força para que ele saia do lugar – pensou o menino que nasceu num mundo de carros que voam. As bicicletas e os tênis haviam sido encostados nos cantos das casas.

O jovem viu o quanto o pedal e a corrida revigoravam sua bisa. Viu o quanto as pessoas dessa época tão ultrapassada de instrumentos tão obsoletos riam mais. Observou que sua vó morreu por que a morte faz parte, mas não por que lhe veio um mal inevitável. Ela se foi por que todos nós um dia iremos. A questão é como vamos aproveitar essa travessia aqui. Pensava essas coisas quando em sua viagem no tempo viu seu pai ganhando medalhas num triátlon: ele nadava, pedalava e corria, mas no presente só trabalhava. “Papai esqueceu de viver”! Pensou o menino. A bisa vivia falando do quanto ele se focou apenas em trabalhar. Por fim o garoto pausou o relógio pois havia se perdido no passado e sinceramente disse para si mesmo: queria ficar lá com ela, mas não posso, tudo isso é só um filme que já acabou. Voltou para seu presente com a ausência da bisa. Para matar a saudade foi olhar novamente a caixa e lá encontrou uma carta da Naná e ela dizia: “O tempo não manda em você, você manda nele, mostre isso a ele.’ Faça o que quiseres, há de ser tudo da lei’. Não importa se a coisa está fora de moda, se o tempo é outro, o tempo é sempre tempo de ser feliz. Use as roupas que fizerem seu corpo sentir conforto, namore alguém que lhe olhe nos olhos e goste de conversar com franqueza, curta as músicas que lhe façam viajar no tempo mesmo que não sejam o sucesso do momento, assista aos filmes antigos que quiser, de preferência com alguém que lhe acompanhe nas ideias, se não tiver alguém, seja você sua melhor companhia, coma com moderação, mas coma tudo que seu paladar topar, não se poupe desse prazer, ame seu corpo, ele é seu companheiro e faz tudo com/por você.”

Parecia que a bisa estava ao seu lado. Após a leitura, colocou o GPS da bisa, foi no quartinho das coisas abandonadas e lá encontrou a parceira de tantas jornadas da Naná, a Mary Huck. Levou-a para uma revisão e resolveu dar uma volta. A vizinhança o olhava estranho e ele com seus fones de ouvidos antigos com suas músicas antigas era seguido pelo seu GPS antigo, mas seu sentimento era de uma vida nova. Percebeu a coxa queimando na subida da ladeira e a recompensa depois com o vento no rosto na hora da descida. Percebeu que as fronteiras dos países eram apenas ilusões políticas e que ele poderia ir onde quisesse desde que não se importasse com as ideologias do momento. Sentiu saudade de um tempo que já havia passado, mas lembrando que o tempo é nosso servo e não o contrário, decidiu viver coisas que lhe fossem aprazíveis mesmo que fossem de um outro tempo que não o seu, mas era seu por que ele assim o queria. Praguejou ter nascido na época em que nasceu. Queria ser filho de sua bisa, ou neto, ou seu namorado. Queria ter sido jovem ao lado dela. Mas o tempo tem seus desmandos também, então de vingança iria viajar com o GPS para onde ela tinha ido. Iria re-viver os momentos que a bisa viveu e dar a si mesmo a magia de um tempo no qual não esteve, contudo o buscou e o trouxe de volta.

Comentários

  1. Francisca Denise Silva Vasconcelos
    Gente, tive uma premonição da minha velhice...rsrs

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  2. Eita! Bem podia ser a minha tb... rsrs
    Adorei!

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  3. Há uma leveza entranhada nesse texto que é maravilhosa. Deve ser a suavidade de quem luta por viver e não só sobreviver maquinalmente. ❤

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