Quando mineram pedras em você.

 Coçou durante dias. Gradativamente, coçava e eu roçava. Vontade de fincar as unhas mas eu só esfregava os dedos, arriscava um pouco mais sobre as roupas. Achei que haviam saído todos, já eram familiares, os pontos.

Houve uma semana nesses dias trancados que eu não conseguia mais engolir. Eu tinha fome, me precipitava pelas horas em jejum,logo depois o vômito, a dor. Me medicavam, amortecia mas logo latejava, ali entre o estômago e o coração.

Amortecia, bonita essa palavra, bonito o que posso fazer com ela. A morte tecia. Amor tecia.

Pedras, um monte de pedrinhas bonitas cor de musgo dentro de mim. O médico me disse que não havia como evitar, é genético. Algumas pessoas nascem, crescem, vivem e criam pedras dentro de si. Um dia elas doem porque precisam sair.

Conte até três e respire. Lembro da luz da sala e dos meus olhos fechando. Eu disse para o meu médico que dá vontade de contar até três, respirar e dormir, outras vezes. Um dormir profundo, sem sonhos, sem dor, como um deixar de existir. Acordar de novo, mas tem que acordar de novo, porque o prazer da sensação está justamente na preparação...um, dois,três...dormiu.

Quatro cortes profundos e pequenos, um pequeno pote com as pedras que eu guardei em mim, feitas de mim. Outras mulheres fazem filhos, eu  faço pedras. Pedras e palavras. Pedras são palavras. Passei um dia inteiro olhando para elas, encantada com os formatos, as cores e o som ao baterem no vidro. Fui eu que fiz, pensava. Pedras, pequenas pedras cor de musgo. Há quanto tempo elas estavam em mim? Como eu, que sou frágil, vulnerável, tão líquida, produzi tantas pedras? Eram vocês que doíam em mim? E agora, o que faço com vocês? Não vou pegar em vocês, tenho um pouco de nojo do tempo que vocês ficaram solidificando dentro de mim.

Os pontos foram caindo e a coceira e o roçar que me seguiam durante o dia e a noite foram diminuindo. Os pontos demoraram muito a cair, alguns, como pontas de tapeçaria, eram indícios de costura na minha pele. São precisos muitos pontos quando se corta tão profundamente e mineram pedras em você. Eu aguardava o tempo dos pontos, tempo e pontos, todos independentes de mim.

Uma noite, acreditando que todos os pontos já haviam caído, passava a mão sobre as minhas cicatrizes. Desenvolvi essa mania. Fecho os olhos e passo a mão no meu ventre, com a ponta dos dedos, lá, sinto onde a minha pele tem um desenho diferente, cicatriz. Me vem um modo de encantamento, essa forma da minha pele contar uma história, assim como as tatuagens. 

Então, era uma noite e eu lia as minhas cicatrizes. Senti algo se desmanchar entre meus dedos. Me assustei, pequenos grãos negros. Eram ainda restos dos pontos. Como irrita, coça, de dentro pra fora esses cortes. Quando eu pensava que em mim havia apenas cicatriz, do meu toque emergem grãos negros, restos do que sustentava o que foi cerzido em mim.

Ontem eu tentei gravar um vídeo pra cá. Não deu certo, era grande demais. Talvez nem seja tempo pra isso porque os ensaios da peça vão começar e quando começo a levar algo a sério, tenho pudores. A peça inicia com a parte de um texto meu. É assustador e imenso, como a onda enorme que vai quebrar sobre você. É preciso saber o lugar exato de mergulhar na onda, para passar por ela e não embolar junto com ela. Na primeira leitura da peça eu fiquei sem ar, justamente na cena em que tentamos respirar fortemente, em que precisamos mostrar que há dificuldade pra respirar. Eu fiquei com falta de ar. Eu realmente fiquei, não a era a personagem, era eu.

Eu decidi que seria melhor escrever do que fazer um novo experimento de cena, assim como uma costura que coça e depois vai caindo, coçando e caindo, cada frase, cada palavra, sustentando o que foi aberto. 

Comentários

  1. Babita, amei te ler (pra variar!). Tua palavra é tão tua, tão rica, intensa. Quase uma foto, uma encenação. Tua escrita é o resultado de muitas artes.

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  2. Como alguém pode transformar algo que parece tão banal, como uma pequena cirurgia, em uma linda história de amor e auto reconhecimento? Você é incrível, obrigada por transformar pedras em palavras...Que parto lindo esse seu! Parir vai além de cuspir crianças...parir é renascer também.

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  3. Tão bom qdo vc usa esse espaço, q é teu tb...
    Tão bom te ver poetando a vida...

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  4. Que texto belo!!! Profundo, humano, revelador!!!!
    Pedra-palavra cai aqui no peito e vai fundo, fundo....!!!!

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