A menina
A
menina soprou no meu ouvido: Você já reparou que, vez por outra, você se torna
montanha? Olhei a formiga andando tranquilamente na minha coxa, enquanto eu, sentada
de pernas flexionadas no batente da porta, admirava o vazio povoado da minha
percepção-pensamento. A menina me ajudou a notar que, para a formiga, eu era
terreno. Com sorte, a fina penugem que crescia nos meus membros não me tornava
demasiadamente acidentada para ser cruzada. A formiga solitária caminhava em
mim-solo sem parecer dar-se conta de que eu fosse viva. Minha enormidade diante
da formiga me ocultou a vida, tirou minhas miudezas subjetivas, tornou-me extensão
pura do planeta. Para ela, eu era um conjunto de elevações e depressões da
Terra. Talvez fosse a Terra mesma. Volta a menina a jogar-me a ideia de que, se
a enormidade esconde a pessoa, poderia ser que Deus fosse alguém que não enxergamos.
A Terra mesma poderia ser um pequeno órgão de um de tantos trilhões de seres
existentes. A menina nunca cessava de perguntar coisas desconcertantes: Será
que a gente é formiga? Se formos formigas, o que é a ‘nossa’ formiga? A menina
tem essa marca de ser boba e sagaz. Ela questiona o impossível como se houvesse
alguma chance d’eu lhe dar respostas. Ela quer saber de Deus, apesar de não
atribuir a esse nome nada referente ao campo da fé. Por isso, Deus, para ela,
podia ser uma pessoa-montanha. Ela quer entender a perspectiva dos bichos
pequenos, como se pudesse convidá-los a tomar um chá e ouvir suas elocubrações
sobre o universo. Ela quer saber se as estrelas e as células são irmãs que
decidiram morar em lugares diferentes. O que ela não sabe não lhe impede de
criar teorias. Ainda que não ouça de mim nenhuma resposta além de um balbuciar
de ‘veja bem, é que...’, a menina segue em sua produção fantasiosa. A
racionalidade dela é desamarrada das pedras e voa no azul profundo do céu. Ao
invés de ter medo de cair daquela altura terrível, ela ri do vento forte que
assanha seus cabelos e sacode vigorosamente sua pele. Já que está no céu, ela me
diz, vai aproveitar para levar um recado das células para as estrelas. Quando a
pergunto “qual o recado?’, ela me diz que só o saberá quando encontrar a
estrela. A menina não me fala, mas eu tenho certeza que a noção de sabedoria
dela é melhor do que minha. Meu conceito é cheio de nós malfeitos, há muita
corda para pouco material a ser amarrado. A sabedoria dela nem é conceito, porque
é puro presente. Está sempre lá quando a ocasião aparece. Não se adianta, nem
atrasa. É um saber atualmente-eterno que não tem medos, rédeas, pontos de
partida ou chegada pré-definidos. A sabedoria da menina não gera aparelhos tecnológicos,
não redige artigos aceitáveis em periódicos sérios, não ensina a fazer bolo ou a
tocar violão. Ela sorri acompanhando meu esforço de distinguir ela e eu e diz:
você consegue dar recado de estrelas para células? Foi a nuvem em forma de rabo
de jacaré que me pediu para te perguntar...
E que essa menina viva dentro de ti enquanto houver sol.
ResponderExcluirEu torço que ela nunca me abandone!
ExcluirConsegue?
ResponderExcluirNem sempre... :(
ExcluirAimeuDeus! Um dos textos mais lindos que li este ano!! Quero cochichá-lo em outros ouvidos muito escutadores.....!!!
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