Cidade de pedra

 

- Estão de volta. Com suas peles encardidas, unhas com terra e mãos estendidas rumo aos nossos carros. O que podemos fazer? Não temos culpa se eles escolheram não se esforçar. Que que nós temos a ver com o fato de que suas mães pretas, desonraram um dos mandamentos da lei de Deus e tiveram relações sexuais antes de casar? E se tiver sido estupro, certamente ela procurou, por que festas, e roupas curtas são para mulheres devassas. E novamente não podem nos culpar por isso. Agora estão aí, enfeiando nossa cidade linda. As calçadas estão cheias dessas famílias pedintes. Absurdo! Colocam os meninos pra pedir. As peles cheias de pano branco, as roupas imundas, enquanto sua mãe aguarda pela esmola a ser dividida com o restante da prole que ficou sentada no papelão que serve de cama. Também fui pobre, mas minha mãe sempre nos manteve limpinhos. Pobreza não é sinônimo de sujeira. Se alguém pensar em dar um emprego a ela, desiste, por que é imunda, maltrapilha. E vão culpar quem? Ao governo, a nós, cidadãs e cidadãos que trabalhamos e pagamos nossos impostos. Tem escola pública. Por que não estudou? E nós, que cumprimos com tudo certinho, deveríamos sentir culpa? Tenha santa paciência. Nossa cidade está apodrecendo com esses seres espalhados nos lugares mais lindos que teríamos para mostrar para nossos parentes que vieram do sul para conhecer o litoral nordestino. Agora pra onde a gente se vira, tem um desses que se acostumaram com esmolazinha do governo. Agora que não tem mais...ficam por aí...estragando o cartão postal.

Pensou a socialite Mariana que dirigia sua BMW se dirigindo da Aldeia Aldeota, “da nata do lixo” para o hospital no qual se recuperava sua sobrinha. A garota era dependente química e havia tentado suicídio na semana do Natal durante uma crise de depressão.

- Bom dia, como está a sobrinha mais linda da titia?

- Bom dia. Respondeu Helen demostrando sua total falta de interesse na visita da tia.

- Trouxe coisinhas que você gosta: livros novos, suas comidinhas preferidas, ainda quentinhas, e estou aqui pra lhe fazer companhia.

- Não quero nada. A única coisa que eu desejo é deixar de existir. Não sei por que se importa comigo, eu abortei um neto seu por uso excessivo de drogas, eu infernizo o juízo da minha mãe e não deixo as pessoas descansarem por que estão todas o tempo todo com medo que eu me mate. Então não sei por que a senhora está aqui.

- Minha querida, você engravidou por acidente, acontece, é assim mesmo. Jovens cometem deslizes, se perdoe, se dê uma nova chance. Você e o Eduardo ainda poderão ser muito felizes. Ele está viajando para Orlando pra desestressar, sempre pergunta por você, e quando voltar, vocês conversarão e poderão rever todas as coisas, e reescrever suas histórias.

Helen, olha pela janela do hospital e vê uma vida lá fora bem diferente da sua ...num suspiro diz:

- Sabe titia, daria tudo aqui nesse quarto para ter a força que tem aquela garotinha ali embaixo vendendo balas para quem saber ter o que comer mais tarde. Daria tudo para ser como a mãe dela do outro lado da rua que por mais pobre que seja não se assustou com a possibilidade de ser mãe, e segue em frente mesmo com toda a desgraça da pobreza que a cerca.

- Não diga isso. Não se compare com essa gente...você não é irresp...

- Não sou o quê? Se tem uma coisa que nunca tive foi responsabilidade por coisa alguma. Sempre alguém estava ali pra resolver meus problemas. E acho que esse foi o meu fracasso. Na hora que senti uma vida pulsando dentro de mim, vi que teria muita responsabilidade pela frente. Agora não interessa mais. Cansei e nada vai voltar a ser como antes. Nunca poderei ser como a vendedora de balas, como talvez ela nunca possa ser como eu. Dizendo isso, Helen se jogou do 38º andar do hospital antes que sua tia pudesse reagir ao vê-la subir no parapeito da varanda.

Helen era paciente psiquiátrica, mas sua mãe não permitiu que a colocassem na ala com maior segurança para que sua filha não fosse rotulada como “doida”. Helen finalizou sua breve história de 21 anos com um salto para um lugar desconhecido. Do outro lado da rua: Ruanita e sua mãe Meire viram o corpo triste se fragmentar no chão. Ruanita de cinco anos, assustada pergunta: - - Ela escorregou mamãe?

- Não filha, ela saiu do sofrimento que é estar preso numa vida vazia de sentido.

- A nossa vida tem sentido, mamãe?

- Todo dia, enquanto a gente sonhar, viver faz sentido.

Mariana, pouco tempo depois sai do hospital estarrecida com o que assistiu a sobrinha fazer. Sem ter ouvido de fato uma palavra do que fora dito, olha Ruanita e Meire do outro lado da rua, e pensa. A infeliz da minha sobrinha, estava mesmo perturbada mentalmente. Achar que essas criaturas fétidas podem ter razão pra viver enquanto ela não. Olha para as mãos e vê os pacotes com as comidas preferidas de Helen, então para não carregar aquele peso até o carro novamente resolve fazer sua boa ação do dia, por que afinal de contas, é uma cidadã de bem. Chama Ruanita do outro lado da rua, e a menina com suas mãos e unhas sujas, corre em sua direção, recebe a sacola e diz ao ver que ela havia chorado:

- Obrigada, senhora, e não deixe de sonhar. Mamãe diz que sempre nos mantem vivos.

 

 

 

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)