O lugar mais confortável do mundo


O lugar mais confortável do mundo talvez fosse ali. Talvez pelo torpor, aquela espécie de anestesia. Talvez pelas cores, muito nítidas, ou por aquela música que não conhecia. Talvez pelo movimento muito lento de tudo. O lugar mais confortável do mundo era agora. Embora sentisse uma chuva fina no rosto, via nuvens, brancas e lentas, no céu bem azul. Será que sentia mesmo a chuva ou seria só impressão? O lugar mais confortável do mundo se expandia, calma e ininterruptamente.

“Filho amolece a gente, irmão.” “Besteira.” “É sério, maluco! Olha Deus, maior tirano linha dura, até nascer o filho, que ele nem registrou, véi!” “Pai é quem cria...” “Aí, ficou todo paz e amor, amoleceu.” “Pensando assim...” “E vai pensar como?” “Cara fazia e acontecia, matava, mandava praga, exigia sacrifício, o escambau! Moleque chega e ele ‘ai, tem que se amar, perdoar e perere parara’. Acabou a marra, mano” “Taí uma verdade...” “Tô falando...” Porque lembrou dessa história agora, não sabia. Riu. Esse dia tinha sido louco.

Sentia um pouco de frio. Tinha sono, queria fechar os olhos, queria aconchegar-se naquele lugar, o mais confortável do mundo, agora.

“Tem que esquentar muito antes de assoprar e, então, vai dando forma. Se assoprar muito forte estraga, fraco demais não expande. Tem que achar a intensidade e velocidade certas. Entendeu?” “Aham, deixa eu tentar” Era mais difícil do que parecia. “Vai tentando, uma hora você pega o jeito...” Passou o dia tentando, era menino, um dia é muito tempo para não conseguir alguma coisa quando se é criança. Desistiu. Há bem mais que vinte anos.

O contorno das coisas estava embaçado, já não via nitidamente os limites, as cores, e tudo parecia um desses quadros de arte abstrata, que a gente nem sabe se entende, mas tem certeza se gostou ou não. O lugar, agora, mais confortável do mundo, talvez, estava imenso, tão grande que já não via seu fim.

“Puta tesão em tu, morena” Gemia e esfregava a bunda no meu pau duro e dolorido. “Vou foder tua buceta” Fazia que recuava e não tirava os peitos da minha cara, enquanto eu brigava com aquela merda de camisinha que ela exigia, puta que pariu. De pé, embaixo da escada, fim do mês, nem uma cama alugada no quarto estreito na casa da Tia. “Ah, morena...” Gozada urgente, explosiva, mas ainda ficava ali. Foi assim que viu o paraíso pela primeira vez, tinha certeza que era o paraíso.

A música, bem distante, tinha agora uma batida constante, monocórdica. Era quase o som de um relógio musical, ou seria um sino na hora da loa? Não tinha mais frio. A chuva parara. O tom do céu misturou-se ao das nuvens, estava longe, mas parecia perto, não sabia. O lugar mais confortável do mundo talvez fosse ali. Talvez pelo apaziguamento entranhado em tudo. Talvez pelo desejo pacificado. Talvez pela calma absoluta. O lugar mais confortável do mundo era agora.

“Passa pra dentro, menino. Logo escurece.” “Deixa, mãe.” “Entra.” “Quando sair a estrela dez (que era até quanto sabia contar).” Ficava. Esquecia de contar. A mãe fingia que brigava. Entrava. O cheiro de comida vindo do fogão e o banho de bacia, que na casa não tinha água encanada. “Amanhã me ensina a contar até muito?” “Ensino.”

O lugar mais confortável do mundo se expandiu, até a borda da noite, no limite do infinito. Era ali e foi agora. Pensou que a vida endurecia a gente e um dia é o suficiente pra se viver. Riu. Contou até a estrela um e foi assim que entrou no paraíso –o lugar menos conhecido do mundo.

 

Comentários

  1. Que delícia de texto! tão leve que me senti dentro dele

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  2. Amei tantas coisas nesse texto. Uma mistura de sagacidade, de leveza, de sabedoria menina. Ah como ler vocês me faz bem!

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