O paraíso é uma fantasia racional


Esticou bem a ponta do pé direito quando espreguiçou, torceu o corpo e alongou os braços. Soltou uma espécie de gemido, um som gutural, sua tentativa de expelir a preguiça, impregnada até os ossos.  Dias assim, às vezes, lhe davam prazer, outras vezes despertavam a melancolia, apostou na segunda pela chuva intermitente.

Esticou-se na cama e ficou de bruços, num estado de sonolência persistente.

Levantou pela fome, apertando o estômago. No espelho um rosto que não reconhecia como seu. Olhos inchados, cabelos assentados, boca seca. Um rosto sem idade, sem brilho, sem expressão. Os dias de leseira e entrega displicente lhe deixavam assim, nessa ausência de si.

Depois do café voltou para cama. Estado de semivida. Os pensamentos entorpecidos não se articulavam. A música do vizinho atravessava a janela ainda fechada “Estou a dois passos do paraíso...” Pensou no paraíso, percebeu que não cabia singular, paraíso sempre lhe fora plural, uma ideia em movimento constante. Era um pouco cansativo, esse lugar que, a cada instante, sofria uma mutação, trocava de posição, não chegava. Por outra, estava sempre disponível à busca. E se já estivesse no paraíso? Por uns minutos sentiu-se assim: a cama aconchegante, o corpo confortável, a alma serena –talvez o paraíso fosse só isso mesmo.

Ouviu o telefone longe, chamando para uma realidade que relutava em querer. Ignorou. Do outro lado alguém insistiu. Que merda! Da terceira vez atendeu, bufando, um certo mau humor. Não era engano, não era gravação da companhia telefônica. Algum conhecido que queria o contato de outro e enfim, a banalidade da vida impôs-se soberana.

‘Quando se volta do paraíso a rotina parece ainda mais cansativa’, pensou enquanto ligava o chuveiro. A água morna escorria pelas costas, uma deliciosa sensação de afago, corria pelo corpo até os pés. Cabelos presos, nuca exposta ao jato moderado. Era bom. Ficou mais tempo que o planejado. Um torpor tímido insinuava-se em si, decidiu entregar-se. Tocou seu corpo como se nunca o houvera feito, hora com vigor, hora com delicadeza. O sabonete brincando no espaço redescoberto, a água, as mãos. Ficou um tempo ali, esquecida da vida (e tão repleta dela). Tão bom...

Um dia inteiro de silêncios longos, palavras curtas, pensamentos sem rédeas, desejos preguiçosos, esse era o cenário que se lhe apresentava e era tentador. Há muito precisava de pausa, dessas espontâneas, não premeditadas. Dessas que você agarra e aproveita ou desperdiça por medo de não saber o que fazer com ela. Agarrou-a.

Tudo em si era letargia e introspecção. Talvez o paraíso estivesse por aí naquele dia, talvez ao alcance da mão, do corpo inteiro, até seu avesso. Talvez.

Talvez a melancolia, molhada pela chuva intermitente, decidisse se recolher num canto, aconchegar-se num quentinho qualquer. E, se assim fosse, teria um dia inteiro de contemplação e ócio, de sossego e descompromisso.

Aquele barulho distante começou a incomodar, cada vez mais perto, cada vez mais alto. Puta que pariu, o despertador! Deu um pulo da cama e bateu o cotovelo na porta, ao entrar no banheiro. ‘E se o paraíso fosse uma virada de lado ao desligar o despertador?’ Pensou, enquanto se enfiava na água fria, que não dava tempo de esquentar.

 

Comentários

  1. Gente, que dia delicioso esse do sonho..., desliga esse despertador, por favor...

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  2. Gosto dessas paraísos alcançáveis, o problema são os despertadores...

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)