Todo poço é raso com a vista do céu
Limpou a mão, suja de barro, na lateral do short. A mãe não ia gostar nadinha, mas não viu outro jeito, precisava subir na mangueira e pegar aquela madurinha que viu escondida pelo galho maior, com a mão suja escorregaria, queria chupar a manga docinha, no pé.
Tirou o sapato e subiu, olhando bem onde pisava, segurando firme até alcançá-la. Arrancou e a danada quase escapuliu de sua mão, mas não caiu. Que sorte! Ajeitou-se num galho grosso, as pernas enganchadas balançando no ar, o caldo da manga escorrendo no queixo, amarelo e doce. Vigiou a fruta por muitos dias, esperando, paciente, a hora certa de colher: um dia antes dos sanhaços.
Desceu com cuidado, ainda assim arranhou um pouco o joelho, na parte interna, besteira, ardeu um pouquinho, mas foi só porque se distraiu com um bando de maritacas que passou gritando. No chão, sapatos calçados, boca limpa na barra da blusa, recolheu algumas mangas caídas no chão, separou as boas num canto e jogou as estragadas.
Decidiu chegar até a bica pra se limpar um pouco, na volta pegaria as mangas e faria uma espécie de embornal com a camisa, quem sabe se, levando as frutas para casa, a mãe ficasse contente e não brigasse com a lambança que fez...
Ainda tinha a boca doce enquanto caminhava até o cano, era um gosto diferente da manga caída no chão. O gosto que os passarinhos sentiam, da altura que os passarinhos comiam. Era o gosto de ser quase um passarinho.
A água caía muito fria, lavou bem as mãos e a boca, molhou também o queixo e passou a mão úmida onde limpara o barro no short. O gosto de ser passarinho ficou longe. Agora sentiu o gosto de ser menino que precisa andar limpo. Era um gosto sem graça. Resignou-se.
A água ali parecia domada, não era um filete de nascente, tampouco se fazia córrego ou cachoeira. Era uma água que pouco variava, corria pro tanque sem vontade própria. Se água fosse bicho, aquela era boi de canga. Bicho de serventia era sempre meio triste, meio sem graça. Gostava mais de bicho sem serventia.
A água gelada endurecia os dedos, que se deixaram brincando ali, enquanto o pensamento ia longe. Nem quando fazia muito calor, no tempo de sol ardido, aquela água esquentava. Talvez porque sempre era sombra daquele lado. Era boa de beber.
Resolveu se apressar na caminhada de volta. Ajeitou as mangas como pode, precisou deixar umas porque não podia carregar, nem enfiadas no bolso. Apertou o passo para chegar em casa logo. Umas gotas de chuva avisaram que ia se molhar.
Ouviu Um trovão estalando alto, parecia que tinha aberto um buraco na terra. Se chuva fosse bicho, a de hoje talvez fosse um bugio. Enquanto quase corria sentiu um restinho de gosto doce no escondido da boca e foi quase passarinho outra vez.
ai que delícia de texto...amei..uma boa forma de começar o dia
ResponderExcluirSentir-se passarinho... amo esses teus textos que me levam para uma vida de menino embrenhado nos matos
ResponderExcluirSer quase passarinho é um gostos que não devemos perder
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