Todos os dias alguma coisa explode sem que se saiba
Toda aquela urbanidade, opressiva e decadente, a deixava deprimida, logo que chegou. Uns restos de cidade, uma coisa tosca, mal cuidada. Nada ali era bonito, nada ali convidava a ficar, muito ao contrário. Olhava pro cinza e se entristecia. Seu peito apertava, tinha vontade de chorar, cerrava os dentes e seguia. Passos duros na calçada quebrada. Olhar duro na cidade rabiscada. Seguia.
Com o tempo, foi se acostumando, não ao lugar, mas ao sentimento. Foi achando que a tristeza era o fim mesmo das coisas. Acostumou-se a desviar dos buracos. Acostumou-se aos palavrões no concreto, ao descolorido e feio. Sua decadência misturava-se à do lugar, tudo o que fora ficava recolhido num canto, mofando e irreconhecendo-se. Tudo bem.
Muito da sua vida ali, sempre achando que partiria no próximo ano, mas ficando... ficando. Ela aguentava o ano inteiro pensando no próximo, que nunca chegava. Atravessava as estações esperando a próxima. Vencia o dia desejando a noite e a noite na expectativa do dia. Nunca estava presente. Sua ausência, imanente desde que chegara, era uma presença em outras distâncias, outros espaços. Não deu por isso.
Um dia, equilibrando-se no meio fio para não molhar os pés numa poça, viu a cidade refletida aí, foi uma revelação! De repente, toda aquela urbanidade opressiva e decadente, que a deprimia quando chegou, transfigurou-se. Sob seus olhos, a cidade espelhada ganhava contornos interessantes, um negativo não revelado e, por isso, misteriosamente possível. Ficou extasiada.
Claro que logo esbarraram nela, uma pessoa parada no lugar de passagem. Claro que a xingaram, gritaram alguma coisa, pisaram na poça, estragaram a imagem. Não importava. Naquele momento, outra cidade surgiu pra ela.
Seus olhos, ávidos do belo e do leve, buscaram. Seus passos, desesperados do macio e do certo, firmaram. Sentiu-se tão presente que, ao respirar fundo, seu peito se expandiu e ela não teve medo que explodisse, tão ali que ouviu o relógio da praça pela primeira vez. Não se assustou, mas viu-se um tanto perdida. Não reconhecia mais a cidade decadente e opressiva.
Pensou em quanto tempo levou para que cada vidro se partisse, cada buraco se formasse, cada cor se afugentasse. Pensou em si, em quanto tempo levou para chegar ali. Pensou no canto mofado, onde o que fora se acabava lentamente, e sentiu-se livre. Livre de si.
Toda aquela urbanidade opressiva e decadente já não existia. Fragmentara-se nesse instante.
Naquele dia partiu, como um passarinho, ante a incerteza do primeiro voo. Uma mistura de medo e coragem, precisão e desejo. O abismo era, então, o espaço necessário para a extensão das asas, uma poça a espelhar uma cidade inteira.
eita que texto gostoso de ler, segui a cidade com ela, procurando minha poça ou reflexo de mim/cidade.
ResponderExcluirEu li tudo e só 'reparei' no título ao fim, até agora apaixonada com por ele...
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