Travessia enluarada
Era uma estrada
de terra. A primeira vez que a vi foi em 21 de agosto de 1985. Em minha
infância urbana periférica não conhecia caminhos que não fossem ladeiras
enlameadas, escorregadias, calçamentos mal feitos, ou asfaltos esburacados nos
quais soltava minhas pipas com muita alegria. A chegada ao Ceará era um futuro
de incertezas. Mamita havia me prometido um lugar lindo, pleno de verde e
inverso de tristeza. O percurso da parada do ônibus até a casa de taipa de Vovó
era marcado por minha insegurança e acima de tudo pela ansiedade da minha mãe
em ver seus parentes. Eu só queria minha vida de volta: minha escola, meu professor
preferido e minhas duas primas-irmãs. Seria pedir muito?
Atravessamos
aquela viela de areia solta, embaixo do sol escaldante do Ceará. Minha pele acostumada
ao clima paulistano suava solidão e medo. Para uma criança de onze anos, perder
tudo que tinha em troca de pés de caju e manga aparentava uma balança
desequilibrada.
Chegamos. E eu
já queria voltar. Anoiteceu e a Lua apareceu linda no céu. Todos comemoravam
com alegria nossa “volta para casa”, eu sentia que minha casa tinha ficado no
morro do Ariston da velha São Paulo. Aquela casa de taipa, sem energia
elétrica, sem água encanada, com primos agressivos (tão diferentes das minhas
primas-irmãs), sem a TV em preto e branco, sem a minha escola e meu professor
Benedito...aquele lugar, não me pertencia. Olhei o caminho por onde tinha
vindo. Ah aquela estrada, areia branca, estreita e a Lua lá no céu. Pensei:
será que em São Paulo ela está linda assim? Deu vontade de tomar aquela
estradinha de novo e pegar de volta tudo que tinha ficado lá, depois dela. A
dor da solidão (eu era a única que não via vantagem naquela viagem de “volta”)
se materializou em lágrimas. Pedi à Lua que me devolvesse minha vida, que como
ela, eu gostaria de estar lá na terra da garoa. Ouvia os risos das minhas
primas-irmãs e chorava lembrando de nossas peças teatrais, de nossos sonhos de
chegar ao céu construindo uma escada na linha do horizonte, lembrando de nossa
alegria no Play Center. Queria nossos momentos cantando e ensaiando para irmos
para um programa de TV e enlouquecendo no show dos trapalhões dentro do enorme
estádio de futebol. Por que a Lua não me jogava um feitiço e me devolvia tudo?
Dormi chorando.
O dia chegava
muito cedo na casa de Vovó. O sol acordava por trás dos cajueiros prometidos
por Mamita. Muitas obrigações naquela vida cheia de pessoas diferentes,
costumes e comidas diferentes. A pobreza no Nordeste era diferente. Nunca tinha
tido uma vida de sobras, mas a falta naquela nova vida, era uma constante.
Ainda assim todos riam e conversavam sobre coisas que não me preenchiam
inicialmente. A noite chegava cedo, sem novela, sem tv, sem rádio e às vezes
sem Lua para me ouvir. Nessas noites eu olhava aquela estrada de terra
branquinha em contraste com a noite escura e construía mentalmente os monstros
criados pelas histórias de trancoso de Vovó. Havia uma série de mito em torno daquela travessia contornada de mato e jurema, muita jurema. As histórias de Vovó
transformavam aquele caminho numa passagem mal assombrada na qual pessoas
sozinhas eram devoradas, ou desapareciam para sempre. Eu não sabia se alguém
tinha sumido, mas sabia que atrás daquela rua, estava minha infância feliz
plena de céu cinza, risos, cantigas, fogueiras de São João, primas amadas,
brincadeiras de roda, chuva de granizo e todos os tesouros que eu havia
descoberto no mapa da minha imaginação. Era lá que estavam. Aquela rua era um
portal sem volta. Talvez por isso, as histórias de cães com olhos vermelhos
arrastando correntes de fogo, ou almas penadas embaixo da jurema não me
apavorassem, apenas me entretinham enquanto eu sonhava com a abertura do portal
feito pela Lua pelo qual eu passasse e me reencontrasse com aquele mundo que eu
achava ser o meu.
Anos se
passaram. Aprendi a amar todas as coisas que me cercavam. Vovó foi especial
nesse ensinamento. Conheci um novo mundo e me adequei aquela nova pobreza.
Nunca mais brinquei de roda. Nunca mais fiz papel de atriz, ou cantei e dancei
para ir para o programa de TV. O sonho de chegar ao céu, passou a ser o sonho
de arrumar um bom emprego. Elas duas, as primas-irmãs, ficaram guardadas na
minha memória tendo a Lua por testemunha dos meus pensamentos. A estrada de
terra sofreu alagamentos em razão da ação humana. Passou a ser uma estrada de
barro enlameada. Caminhões vinham de longe despejar os dejetos vindos da nata
do lixo. Atravessei muitas vezes aquela estradinha indo e vindo da escola,
enquanto a Lua me acompanhava, silenciosa e protetora. Não me devolveu minha
infância, esta fora roubada pelas circunstâncias da vida, “envelheci dez anos
ou mais” naquele verão.
A estradinha enluarada
está lá, ainda me parecendo misteriosa. Nas noites de Lua cheia ela me mostra
que os caminhos são os mesmos, nós que somos outros. Percebo que ela nunca me
impediu de voltar. Nunca esteve fechada. O que me tirou de onde eu queria estar
não fora ela. As travessias dependem das condições que nos cercam. Ela estava
lá, aberta e linda. O portal por mim imaginado era na verdade 3000 km de
distância; dinheiro nenhum para voltar, lugar nenhum para ir por que minha
história estava sendo reescrita por mãos que não eram as minhas. A estradinha
banhada de Lua era apenas o símbolo do fim de um ciclo e o início de outro. Por
que é isso que travessias fazem, são dialéticas, são opostas complementares.
Encerraram tempos de alegria e de um tipo de dor, iniciaram outros marcados por diferentes alegrias e ausências que tiveram de ser trabalhadas ao longo de décadas. Essas ausências hoje são presenças em mim, pois me tornaram quem sou.
O caminho e o caminhante se fundem, não há o segundo sem o primeiro, tampouco o primeiro existe sem os os passos do segundo. Travessia mais linda, essa, da vida...
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